O silêncio do corpo: a ausência do sistema endocanabinoide na formação médica

O sistema endocanabinoide não é moda, nem tabu. É biologia, é base. Sua omissão da formação médica é um ruído no cuidado, uma ausência gritante no corpo do conhecimento

Publicada em 16/05/2025

O silêncio do corpo: a ausência do sistema endocanabinoide na formação médica

Como pode um dos sistemas mais importantes da fisiologia humana ser ignorado por quem cuida da nossa saúde? | Imagem: CanvaPro

Há um sistema em nosso corpo que atua como maestro silencioso, e é responsável por regular funções vitais que todos nós temos como o humor, o apetite, o sono, a dor e até a resposta imunológica. Ele existe, trabalha incansavelmente e, ainda assim, permanece praticamente ausente das salas de aula da medicina tradicional. 


Estamos falando do sistema endocanabinoide (SEC),  uma engrenagem crucial da biologia humana que, por ironia do destino (ou do estigma), recebeu o nome de uma planta ainda controversa: a cannabis. E talvez seja justamente aí que o problema começa.


A omissão que ecoa no consultório


Segundo o farmacologista molecular Dr. Stefan Broselid, fundador da ECS Education, a ausência do SEC no currículo médico não é apenas uma falha pedagógica, mas sim, uma lacuna que tem impacto direto na qualidade do atendimento em saúde. “Não se trata só de cannabis medicinal. Trata-se de biologia humana. O SEC regula praticamente todos os sistemas fisiológicos, mas não é ensinado”, afirma.


Um estudo recente feito com enfermeiros e estudantes de enfermagem em Portugal reforça esse abismo: mais de 70% nunca tinham ouvido falar do SEC, embora a maioria reconhecesse os benefícios terapêuticos da cannabis medicinal. 


A montanha de evidências ignoradas


Em um outro estudo da ECS.education, realizado com artigos publicados ntre 2002 e 2022, mais de 1.200 publicações com “sistema endocanabinoide” no título foram registradas no PubMed. O índice h do campo é de 138, superior ao de áreas já consolidadas como os sistemas digestivo, endócrino e linfático.


Ainda assim, livros referência, como o clássico Guyton and Hall Textbook of Medical Physiology, seguem ignorando o tema mesmo na edição de 2020. Para o Dr. Broselid, isso escancara o atraso entre as descobertas científicas e a prática clínica: “essa desconexão entre o conhecimento que temos e o que é ensinado é incrivelmente frustrante”.


O estigma que arrastamos


Como explicar esse descaso com um sistema tão vital? O Dr. Broselid acredita que parte do problema é semântico e cultural: o fato de o SEC ter sido descoberto a partir da pesquisa com cannabis o prendeu a um estigma histórico, dificultando sua adoção no ensino médico. “Talvez tenhamos cometido um erro ao nomear um dos sistemas mais importantes do corpo em homenagem à planta mais controversa da sociedade”, reflete.


Esse estigma, ainda tão presente, acabou contaminando o próprio conhecimento sobre a fisiologia humana.


A ausência de formação sobre o SEC limita a compreensão clínica de doenças e condições que envolvem desequilíbrios nesse sistema, que vão muito além das indicações tratadas pela cannabis medicinal. O SEC está intimamente ligado, por exemplo, à nutrição e ao metabolismo lipídico, já que os endocanabinoides são derivados de gorduras alimentares, como os ácidos graxos ômega-6 e ômega-3.


Com dietas modernas carregadas de ômega-6, temos um cenário de superativação crônica do sistema, fator que pode estar por trás de epidemias silenciosas como a obesidade e a síndrome metabólica. Ignorar o SEC é ignorar parte da explicação para desequilíbrios que vemos todos os dias.


Para tentar corrigir essa distorção, Broselid e a Medical Cannabis Clinicians Society (MCCS), no Reino Unido, estão desenvolvendo programas de formação voltados exclusivamente à fisiologia do sistema endocanabinoide.


O foco não está na cannabis em si, mas no entendimento amplo do SEC em contextos patológicos diversos. Um curso de 45 minutos sobre o tema será oferecido aos membros da MCCS ainda este ano. Uma semente de mudança.


Precisamos falar do sistema que nos equilibra


O sistema endocanabinoide não é moda, nem tabu. É biologia, é base. Sua omissão da formação médica é um ruído no cuidado, uma ausência gritante no corpo do conhecimento.


Falar sobre ele não é levantar bandeiras. É reconhecer que não podemos cuidar plenamente da saúde sem entender todos os seus sistemas,  inclusive os que ainda não aparecem nos livros.