A situação jurídica precária em que se encontra a prescrição médica de cannabis para uso veterinário no Brasil 

Advogadas rebatem posicionamento do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) sobre uso medicinal da cannabis para animais: “orientação do órgão dificulta o acesso”

Publicada em 21/11/2023

capa
Compartilhe:

Por Emília Malgueiro Campos e Patrícia Schmitt  

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) – agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, responsável pelo registro de medicamentos para uso humano no País – incluiu a Cannabis sativa (Cannabis) como planta medicinal na Lista Completa de Denominações Comuns Brasileiras (DCB) em 2017. 

No entanto, os produtos de Cannabis não se encaixavam em nenhuma das categorias previstas na Lei Nº 6.360/1976, que “dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos”. Desta forma, em 2019 foi necessário que uma nova categoria fosse criada, através da Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA (RDC327) para inclusão da Cannabis. 

A RDC327 dispõe sobre os procedimentos para a concessão da Autorização Sanitária para a fabricação e a importação, bem como estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais. Em seu artigo 13 é dito que a prescrição dos produtos de Cannabis é restrita aos profissionais médicos legalmente habilitados pelo Conselho Federal de Medicina, o que pareceria inibir, assim, a prescrição por outros profissionais da saúde, como médicos veterinários, por exemplo. 

No entanto, a RDC327, ao fazer essa limitação, contraria o posicionamento do Ministério da Saúde a respeito, ao qual é hierarquicamente subordinado, tendo em vista que pela Portaria 344/1998 deste Ministério, o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, está garantida a possibilidade de prescrição de produtos medicinais humanos por médico-veterinário. 

Ademais, a RDC 660/2020, que trata da importação de produtos derivados de Cannabis mediante autorização especial, em seu artigo 1º, ao contrário do que dispõe a RDC327, autoriza a prescrição por qualquer “profissional habilitado para tratamento da saúde”. 

E a incongruência entre as RDC’s 327 e a 660 faz com que um médico veterinário possa prescrever para uso de um animal um produto derivado de cannabis importado, mas não consiga prescrever um medicamento a base de cannabis fabricado no Brasil e vendido nas farmácias, o que é um total contrassenso. 

Diante da confusão regulatória criada pela ANVISA e falta de posicionamento mais assertivo do Conselho Federal de Medicina Veterinária, a orientação deste é que, antes de prescrever o tratamento com Cannabis, o médico-veterinário delimite de forma objetiva o diagnóstico do paciente, leve o caso ao Judiciário e obtenha autorização judicial para realizar a prescrição necessária ao tratamento. 

A orientação do CFMV não parece condizente com a legislação já existente a respeito, tampouco é uma solução prática, já que seria necessário ajuizamento de diversas ações para obtenção da autorização judicial para pacientes/grupo de pacientes, em cada caso concreto. Na prática, a orientação do CFMV dificulta o acesso do paciente veterinário a cannabis 

Os citados instrumentos da ANVISA, apesar de serem posteriores a Portaria 344/1998 do Ministério da Saúde, não alteram o entendimento da possibilidade de prescrição de medicamentos humanos por médicos-veterinário para uso veterinário, não só por ser uma Portaria, instrumento legislativo hierarquicamente superior a uma Resolução, mas também porque a redação da RDC 327 parece claramente um erro, quando comparada a da RDC 660, que é posterior e abrange todos os profissionais de saúde. 

Desta forma, o ajuizamento de ação judicial pelos médicos veterinários, como orienta o CFMV, é um caminho que cria empecilhos para acesso ao medicamento, tendo em vista que esta autorização da prescrição de medicamento humano, neste caso Cannabis, para uso veterinário é garantida pela Portaria 344 do Ministério da Saúde e a qual está condicionada a ANVISA. 

Não parece razoável que para ter pleno exercício de sua profissão e poder prescrever Cannabis aos seus pacientes seja necessário, a cada caso, o ajuizamento de uma ação pelo médico-veterinário. 

No entanto, até que uma revisão nessa disposição da RDC337 seja implementada pela ANVISA, ou uma decisão judicial defina pela sua modificação ou lei específica seja aprovada (o que não seria necessário, mas, nesse país, tudo parece “se resolver” com uma nova lei), a prescrição do médico-veterinário para os produtos de cannabis vendidos nas farmácias deve ser aceita e caso não o seja, a ação judicial poderá ser proposta não só pelo médico-veterinário que está sendo impedido de exercer sua profissão, mas também pelo responsável legal do animal, que está sendo impedido de obter o tratamento de saúde mais adequado. 

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e não correspondem, necessariamente, à posição do Sechat. 

Sobre os autores: 

Emília Malgueiro é consultora jurídica para mercados disruptivos, professora, palestrante, tecnologia, blockchain, Web 3.0, cripto e cannabis. 

Patrícia Schmitt é especialista em desenvolvimento de negócios, direito empresarial e administrativo, regulatório, compliance, LGPD, proteção de dados pessoais e cannabis.