Cientistas assinam carta pelo amplo acesso à cannabis medicinal no Brasil

Publicada em 02/09/2019

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Diante da nota técnica que o Ministério da Saúde encaminhou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária recomendando que a Anvisa registrasse somente o canabidiol e apenas para uma doença, epilepsia refratária, três cientistas envolvidos com a cannabis medicinal assinaram uma carta aberta em defesa de um amplo acesso aos medicamentos à base da planta.

São signatários do texto Fabrício Pamplona, doutor em Farmacologia dos canabinoides e ex-diretor de uma empresa pioneira em medicamentos canabinoides no Brasil, a médica Paula Dall’Stella, pós-graduada em neuro-oncologia e pioneira na prescrição de cannabis medicinal no Brasil, e o médico Ricardo Ferreira, especialista em patologias da coluna vertebral e clínica da dor.

Para Pamplona, com essa iniciativa do governo federal, é "impossível não levantar a suspeita de que há outros interesses envolvidos, e um forte posicionamento ideológico/cultural por trás dessa manifestação contrária à regulamentação do setor".

Para o cientista, "do ponto de vista técnico, é claramente imprecisa, em desacordo com o que se tem de informação científica internacional, e mesmo contraditória com o fato de termos inclusive medicamentos à base de Cannabis ou canabinoides já registrados para outras finalidades".

A carta foi publicada nesta segunda-feira (02) originalmente no blog Tudo Sobre Cannabis e é reproduzida com autorização pelo portal Sechat.

CARTA ABERTA EM DEFESA À AMPLA REGULAMENTAÇÃO DO USO MEDICINAL DE CANNABIS NO BRASIL

Dr. Fabricio Pamplona,
Farmacêutico, Doutor em Farmacologia dos Canabinoides e ex-diretor da empresa pioneira em medicamentos canabinoides no Brasil

Dra. Paula Dall’Stella
Médica e pioneira na prescrição de Cannabis medicinal no Brasil

Dr. Ricardo Ferreira
Médico especialista em patologias da coluna vertebral e clínica da dor.

A despeito dos factóides e informações controversas que vemos nos meios de comunicação, sentimo-nos no dever de esclarecer a população brasileira sobre um assunto com o qual temos experiência: a cannabis medicinal é algo real. Não há qualquer justificativa médico ou científica sólida o suficiente para justificar que os pacientes brasileiros sejam privados dessa alternativa terapêutica. Há riscos? Sim, sem dúvida. Mas eles não são superiores em nada aos riscos das abordagens farmacológicas “tradicionais” no campo da neurologia ou psiquiatria, e mais ainda, da oncologia.

Como em qualquer abordagem terapêutica, o médico precisa fazer uma avaliação criteriosa do custo-benefício, ajuste de dose, e acompanhamento terapêutico. A intenção desse texto é esclarecer e trazer um contraponto ao texto alarmista publicado recentemente (“Precisamos falar sobre a maconha” publicado na revista VEJA), semelhante a tantos outros posicionamentos anteriores de um grupo de psiquiatras brasileiros que trazem um ponto de vista bastante pernicioso em relação ao uso medicinal de canabinoides. Sem querer desmerecê-los, pois são dúvida são profissionais de excelência em suas profissões, gostaríamos de esclarecer alguns pontos ainda nebulosos na argumentação, e particularmente, reduzir o nível de “histeria” associado a esse tema, pois não há necessidade.

Os signatários desta carta aberta se destacam por serem pioneiros neste campo no Brasil, com anos de experiência profissional com o tema, seja no âmbito clínico, investigacional-científico ou desenvolvimento de produtos à base de Cannabis. A contribuição aqui visa esclarecer a população, e embasar a discussão mais profunda e menos alarmista de um cenário regulatório saudável para o desenvolvimento desta área terapêutica no Brasil de maneira responsável, e em prol dos pacientes.

A prática clínica com os canabinoides e o estudo profundo do tema, nos mostra um cenário muito mais manejável da terapêutica, e particularmente um perfil de segurança bastante tolerável para a Cannabis medicinal, em suas diferentes formas de utilização. O texto que mencionamos traz algumas informações deturpadas, ou que, ainda verdadeiras, são usadas em contexto diferente do original. O autor descreve o “sistema endocanabinoide”, assim mesmo, “entre aspas”, como algo menor, quase uma curiosidade científica e mencionam que ainda tem “funções pouco conhecidas”. É bem verdade que a descoberta deste sistema é relativamente recente para a ciência (data da década de 90), e só muito mais recentemente começou a ser amplamente divulgado nas faculdades de medicina.

No entanto, dizer que suas funções são “pouco conhecidas”, é uma inverdade absoluta. Estamos falando de um sistema de neurotransmissão dos mais amplos conhecidos, presente em praticamente metade dos neurônios do cérebro, considerando a distribuição de seus receptores, e associados a funções absolutamente fundamentais como o controle do equilíbrio da neurotransmissão, da homeostase hormonal e da neuroplasticidade. É o sistema endocanabinoide que regula o nosso organismo para que ele se mantenha “em ordem” (é o que chamamos de homeostase), afetando as funções mais diversas como dor, apetite, sono, humor e balanço inflamatório. Essas funções parecem importantes para o leitor? Pois são. Todas absolutamente fundamentais para a manutenção da saúde do nosso organismo. Daí vem o conceito atualmente discutido pela ciência de que um desbalanço no sistema endocanabinoide daria vazão a um estado desregulado do organismo, tendo sintomas crônicos, de difícil tratamento como sua consequência mais direta. Ainda que o conceito da “síndrome de eficiência de endocanabinoides” ainda não seja ainda consensual na comunidade científica, relegar o sistema endocanabinoide a um papel secundário no organismo só pode ser falta de informação ou má fé. É uma tentativa talvez, de desmarecer uma comunidade de pesquisadores internacionais sobre o tema, onde o Brasil tem participação ativa há décadas, e da qual os psiquiatras mencionados não fazem parte.

Quanto aos demais riscos potenciais apontados pelo autor do texto, não há dúvida de que são verdadeiros, frutos de pesquisa sérias, ainda que vistas com olhar detalhista, elas também sejam alvos de discussão na comunidade científica. Nossa intenção aqui não é tentar desmerecer as evidências de potenciais riscos terapêuticos apontadas, mas sim de mostrar que elas fazem parte de um conjunto de fatores em uma avaliação de risco-benefício terapêutico. Particularmente, há diferentes composições de produtos possíveis, mais adequados ou menos adequados a determinados sintomas, e cujos riscos também diferem. Vamos desde o canabidiol (CBD), com potencial comprovado em epilepsias refratárias, e evidências de eficácia em melhora do sono e ansiedade, até o mais controverso delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), com potencial comprovado como tratamento paliativo no alívios dos efeitos de quimioterapia, passando por composições contendo ambos em igual proporção, para alívio de dores e espasticidade associados à rigidez muscular em certas doenças neurodegenerativas.

Em todos os casos estamos falando de produtos registrados internacionalmente, com estudos clínicos internacionais de comprovação de segurança e eficácia, como pré-requisitos ao registro como medicamento. Há ainda uma infinidade de evidências de uso em outros casos e patologias (o repositório da associação de pacientes alemã IACM lista mais de 700 estudos clínicos na área), tornando inequívoco o conceito de que o uso medicinal de canabinoides é algo real, útil, e muito bem vindo como parte do arsenal terapêutico. Para esclarecimentos sobre o que são e para que servem os medicamentos à base de Cannabis, sugerimos um artigo em português para o leitor mais interessado (https://www.ib.usp.br/revista/node/184).

Um ponto de controvérsia aqui é, sem dúvida, a noção de que os tratamentos com Cannabis promovem o bem estar do indivíduo, o que é algo ainda novo, e talvez incompreendido pela maioria dos médicos. “Sentir-se bem” é parte dos efeitos benéficos dessa planta, e parte do motivo pelo qual os pacientes gostam de utilizá-la. É este o ponto de sobreposição entre o que se considera um uso medicinal legítimo, e um uso “social” ou “recreativo”, que tanto preocupa os autores do texto. Em que pese o fato de que o âmbito do uso “social” foge do escopo desta discussão a nosso ver, o ponto importante aqui é que o padrão de uso que se observa em um usuário buscando intencionalmente os efeitos psicoativos da planta Cannabis e um paciente buscando seus efeitos medicinais é normalmente diferente. Muitas vezes se difere pela via de administração (uso fumado versus oral), frequência de uso e certamente pela dose. Assim, associar a imagem do paciente de Cannabis medicinal ao exemplo comum de “um adolescente fumando maconha nas ruas” (como nas campanhas anti-drogas) é uma deturpação total e um desrespeito à condição em que estes pacientes vivem.

Na prática clínica, temos contato com toda sorte de realidades, de crianças com epilepsias refratárias e que sob tratamento retornam seu desenvolvimento cerebral ao mais próximo possível da normalidade, vemos adultos com dores crônicas que levantam da cama e passam a ter uma vida normal, vemos pessoas que resistem melhor aos efeitos nefastos da quimioterapia e vemos idosos que passam a dormir e se sentiram melhor. Para todos estes casos, temos evidências da literatura e casos clínicos reais, de nossa prática diária. A ocorrência de quaisquer dos sintomas mencionados (surtos psicóticos, síndrome amotivacional, prejuízos cognitivos) e outros que não foram mencionados diretamente (dependência, hipermese), são riscos reais decorrentes do abuso de Cannabis, frequentemente associado a padrões de uso crônicos, frequentes e em altas doses. Em âmbito terapêutico, a possibilidade de ocorrência é drasticamente reduzida pelo ajuste de dose, supervisão e acompanhamento adequado de um clínico experiente. Na maioria dos casos, o custo-benefício vale a pena, e em geral, a frequência de eventos adversos graves é bastante baixa, e não difere de outros medicamento neurológicos na nossa experiência clínica.

É bem verdade, como apontado pelo autor do texto, que estamos lidando com um mercado bilionário, em plena ascensão internacional, e como tal, muito influenciado por diversos interesse econômicos. Assim como o mercado farmacêutico, não é mesmo? Afinal, não estamos lidando com nenhuma surpresa aqui. O que difere esse ramo, são suas diversas nuances e particularidades, e o fato de que dadas as diferentes regulamentações, há toda sorte de produtos disponíveis. É precisamente esse o ponto em que a ANVISA decidiu interferir, na nossa opinião, ainda em tempo hábil para “colocar ordem na casa”. O único fator que impede o desenvolvimento desse ramo de atuação da medicina no Brasil é a escassez de alternativas de produtos, particularmente de produtos com qualidade e segurança asseguradas. O passo regulatório iniciado pela agência regulatória visa, corretamente, formalizar o mercado, padronizar a qualidade e determinar regras claras para os interessados em fornecer produtos à base de Cannabis ou canabinoides no Brasil. E o faz inspirada por outras agências regulatórias internacionais com experiência no tema, como a canadense (Health Canada), a holandesa (OMC), a uruguaia (IRCA), a israelense e a portuguesa INFARMED, com as quais sabemos que a ANVISA cooperou ao longo desse processo. A agência o faz baseada em muita pesquisa científica, com razoabilidade e conhecimento de causa. É exatamente isso que está faltando. Entendemos que as associações e pacientes não se sintam representados por uma regulamentação que visa regulamentar a atividade industrial, e entendemos que haja resistência da classe médica mais conservadora, pois afinal, trata-se de uma novidade. No entanto, sugerimos a estes e os demais interessados para que esse debate ocorra o âmbito das contribuições à regulamentação brasileira durante esse período de consulta pública (654/2019 e 655/2019, que ficaram abertas até o dia 19/08). Consideramos que todos podemos contribuir para que a regulamentação seja inclusiva, pautada pela qualidade e na defesa dos interesses dos pacientes. Ao contrário do autor do texto, acreditamos que a ANVISA tenha tomado uma atitude necessária, corajosa e responsável com a iniciativa de regulamentação deste setor no Brasil, evitando a marginalização e ilegalidade que inevitavelmente agem nos momentos em que há um vácuo regulatório, prejudicando a todos e causando confusão, sobretudo para os médicos e pacientes.

Ao trazer clareza para as regras de produção, prescrição e comercialização de produtos à base de Cannabis e canabinoides no país, a ANVISA realiza o seu papel de agência regulatória e atua em linha com as demais autoridades sanitárias internacionais de primeira linha. Da mesma forma, facilita o acesso a produtos com qualidade adequada, pautado em experiências internacionais bem sucedidas, traz a figura da farmacovigilância como elemento central e vincula a prescrição ao acompanhamento terapêutico e realização de investigação científica pelas empresas produtoras. Haverá registro, controle e fiscalização adequados, e sobretudo, haverá acesso baseado em evidências e com orientações para a prescrição médica. Tudo o que é novo assusta, é inerente à condição humana, e nesse campo tudo parece estar acontecendo ao contrário, pois são os pacientes que estão realizando em si mesmos um trabalho de experimentação pioneira sem precedentes. É hora de termos humildade e aprendermos com estas experiências. Os pacientes estão dando uma lição que precisamos ouvir.

São signatários dessa carta,

Dr. Fabricio Pamplona,
Farmacêutico, Doutor em Farmacologia dos Canabinoides e ex-diretor da empresa pioneira em medicamentos canabinoides no Brasil

Dra. Paula Dall’Stella
Médica e pioneira na prescrição de Cannabis medicinal no Brasil

Dr. Ricardo Ferreira
Médico especialista em patologias da coluna vertebral e clínica da dor.


Referências mencionadas no texto

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/08/ministerio-da-saude-recomenda-a-anvisa-registro-de-canabidiol-apenas-para-epilepsia.shtml

https://veja.abril.com.br/saude/precisamos-falar-sobre-a-maconha/

https://www.ib.usp.br/revista/node/184