Cannabis vaporizada abre discussão sobre alternativa terapêutica no Brasil

Mesmo com a melhora clínica evidente, tratamento com flores de cannabis vaporizadas ainda é limitado por barreiras legais e burocráticas

Publicada em 18/07/2025

Vapor de esperança: pacientes recorrem à cannabis vaporizada em busca de alívio

Ao preservar melhor os compostos ativos da planta, a vaporização reduz danos ao organismo. Imagem: Canva Pro

Em 2023, a médica Lina Dantas recebeu em seu consultório, dois pacientes que encontraram na via inalatória uma alternativa eficaz para recuperar a qualidade de vida.

No primeiro caso, uma jovem de 20 anos com paralisia cerebral, consequência de um engasgo ocorrido quando ela tinha apenas dois anos. Depois de inúmeras tentativas com medicamentos — inclusive metadona, que trouxe efeitos colaterais severos —, foi com o fumo da flor que ela começou a experimentar algo próximo do alívio. “Ela dependia do THC. Era isso que realmente ajudava a aliviar a espasticidade e a dor decorrente dessa condição”, relata Lina.

Quando entrava em crise, bastavam algumas tragadas — inalar fumaça ou vapor — para obter um alívio imediato. A melhora foi tão significativa que ela passou a caminhar até 10 quilômetros por dia — feito impensável para quem, até pouco tempo antes, mal conseguia sair da cadeira de rodas.

 

Falta de adaptação ao óleo de cannabis 

 

No segundo caso, um homem diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA), por não se adaptar ao óleo extraído da planta, optou pela via inalatória. Desta vez, a vaporização foi a sua escolha. O efeito quase instantâneo era decisivo em seus momentos de crise de ansiedade e hiperatividade. “Quando você vaporiza, o efeito ocorre em minutos. Já com o óleo, pode demorar até uma hora”, explica a médica.

Diante da melhora clínica, Lina chegou a considerar a prescrição de medicamentos importados de uma empresa australiana, onde a administração inalatória de cannabis já é regulamentada. Mas a realidade brasileira logo impôs seus limites.

 

Barreiras regulatórias: o impasse da ANVISA


A Nota Técnica nº 35/2023 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) proibiu a importação de flores de cannabis para fins medicinais. Após essa decisão da agência em 2023, Lina precisou interromper a prescrição da via inalatória. “No Brasil, estamos muito atrasados nisso. Austrália, Estados Unidos, Canadá e alguns países da Europa já avançaram bastante”, lamenta.

Apesar dos entraves, a médica defende a eficácia da vaporização da cannabis como via terapêutica legítima. Embora reconheça que o fumo também traga alívio, destaca suas limitações: além da perda de cerca de 30% do material da flor — incluindo terpenos e canabinoides —, há o impacto da fumaça e do calor nos pulmões.

 

Por que a vaporização é mais segura?


Ao preservar melhor os compostos ativos da planta, a vaporização reduz danos ao organismo. “A temperatura de entrada no corpo, em vez de ultrapassar os 300 °C da combustão, fica entre 180 °C e 220 °C — que é o limite usual dos vaporizadores”, detalha Lina.

Essa precisão térmica permite liberar compostos específicos. “Por exemplo, a 190 °C conseguimos liberar mais CBD”, afirma a médica, ressaltando que, como em qualquer prescrição, é necessário pesar os riscos e benefícios. “Quando os benefícios superam os riscos, o uso é indicado.”

 

Estudos reforçam a preferência por métodos menos concentrados


Uma pesquisa publicada em 2015 pelos cientistas Mallory Loflin e Mitch Earleywine mostrou que muitos usuários medicinais preferem a flor vaporizada de cannabis a extratos mais concentrados, justamente por proporcionar efeitos rápidos e menor risco de tolerância com o uso prolongado.

Ainda assim, a combustão continua sendo o método mais comum de consumo — geralmente por meio de cigarros, fornilhos, bongs ou objetos improvisados. Contudo, fumar cannabis não é isento de riscos: usuários frequentes podem apresentar tosse, chiado no peito, inflamação nas vias aéreas e excesso de muco. Mesmo assim, estudos apontam que o fumo de cannabis é menos nocivo que o tabaco, especialmente em países com regulação e controle de qualidade.

 

Gênero, idade e novos hábitos de consumo


Segundo dados da Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde (NSDUH), realizada entre 2022 e 2023, as preferências de consumo variam conforme o perfil do usuário. Entre os homens, quase 20% ainda preferem fumar. Já entre as mulheres, apenas 14,3% relataram preferência pelo fumo, optando cada vez mais por alternativas como vaporizadores, comestíveis e loções.

A faixa etária entre 18 e 25 anos apresenta os maiores índices de experimentação: quase 28% utilizam três ou mais métodos de consumo. Embora o fumo continue sendo popular, há uma clara tendência de migração para métodos menos agressivos, como os vaporizadores.

 

O debate sobre a regulação no Brasil


A proposta de revisão da RDC 327/2019 — cuja consulta pública foi encerrada em junho — reacendeu o debate sobre as formas permitidas de administração de produtos à base de cannabis, neste sentido, além das vias oral e nasal/inalatória que já são permitidas, a agência abriu discussão para a inclusão das vias dermatológica, sublingual e bucal.  

A urgência da regulação de vaporizadores de cannabis foi abordado em uma coluna no portal Sechat, assinada pelos advogados Konstantin Gerber e Paulo Thiessen — este último também conhecido por sua atuação internacional em defesa dos direitos ligados à planta.

A principal barreira é justamente a interpretação da Nota Técnica nº 35/2023, que proíbe a importação de flores sob a justificativa de insuficiência científica, conforme destacado na coluna. 

Contudo, os especialistas argumentam que essa justificativa já perdeu força, sobretudo diante da crescente judicialização do tema. “Torna-se evidente a urgência de garantir acesso seguro e regulado aos dispositivos que viabilizam a administração inalatória da cannabis medicinal — especialmente os vaporizadores”, afirmam Gerber e Thiessen.