Plantas de poder: a conexão ancestral da cannabis com a sociedade contemporânea 

Da China antiga à São Paulo em 2023, entenda como a história global da cannabis em rituais moldou a relação que temos com a planta

Publicada em 26/11/2023

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Por André Skortzaru

Inverno de 2023. Fim de um dia de sol, tempo seco em São Paulo. Em sua bike elétrica, Hanna Diamba pedala rápido para chegar no seu apartamento. Ela não vê a hora de aterrissar na sua caverna, em Santa Cecília, bairro central e “descoladex“ da cidade, alimentar o seu gato, regar e conversar com as suas plantas, tomar um banho de ervas de limpeza, e, com tranquilidade fazer uso da cannabis que ela mesma cultiva, a fim de relaxar, aliviar suas dores físicas e emocionais. 

A Hanna também enfrenta a fibromialgia* e, neste dia, a dor crônica no seu quadril a incomodava, trazendo fadiga, distúrbios intestinais, dor nas articulações e enxaqueca. A planta sagrada que a Hanna consagra, costuma reduzir sua dor, traz um momento de paz, contato com a sua essência e ainda a ajuda a dormir melhor. 

Sem se dar conta, Hanna repete um ritual que o ser humano pratica há pelo menos 12.000 anos. Seus ancestrais e seres humanos em todos os continentes do planeta, consagravam “plantas de poder” e medicinais para curar, alimentar, entrar em contato com a natureza e especialmente consigo e com o divino. 

O termo “Plantas de Poder” surgiu no contexto da contracultura* na década de 1960, e associa-se ao mesmo tempo, com Carlos Catañeda, os ensinamentos do xamã Don Juan, bem como o uso de plantas como o tabaco, peiote, datura stramonium e cogumelos da espécie psilocybe. 

Entendo que plantas de poder são medicinas sagradas que podem alterar e ampliar a percepção, consciência e os sentidos, bem como conectam o ser humano com forças, poderes*, consigo mesmo e com o divino.   

As plantas de poder, são consideradas “enteógenos” quando utilizadas em um contexto de autoconhecimento, ritualístico, religioso ou espiritual. Derivada do grego antigo “Entheos” significa inspirado por Deus e o sufixo “genos” significa produção, ou seja algo que gera o contato com o divino, o divino dentro de si. 

Em contrapartida, considera-se como psicoativas* e plantas medicinais*, quando o uso de uma planta de poder para uso sem fins espirituais. Há quem utilize também os termos alucinógenos* e psicodélicos* para caracterizar as plantas de poder e medicinais. 

Dentre as principais “plantas de poder” destaco a Cannabis ou Santa Maria, Ayahuasca (chacrona+jagube), Jurema, Tabaco, Coca, Datura, Peiote, Wachuma, Iboga, Papoula, Artemísia e Salvia Divinorium. 

Muitas culturas e tradições acreditam que essas plantas são habitadas por um espírito, isto é, uma mãe, consideradas seres inteligentes, dotadas de personalidade própria com os quais podemos nos relacionar e aprender. De acordo com as autoras Beatriz Caiuby Labate, Sandra Lúcia Goulart e Henrique Carneiro, no livro “O uso ritual das plantas de poder”*, o fenômeno da consciência deve ser o foco da reflexão filosófica, médica, cultural, religiosa, artística e científica sobre o uso e efeito das substâncias psicoativas.    

Assim como a Hanna Diamba (álter ego da minha ex-parceira), considero a Cannabis uma planta de poder sagrada, habitada e representada pelo espírito sagrado feminino, minha madrecita, minha abuelita, minha medicina aliada que ensina, cura e me possibilita evoluir.  

Santa Maria, Ganja, Bangh, Diamba, Marijuana, Santinha, Madrecita, Wisdom Weed, Holly Herb, Erva Sagrada… São muitos nomes para o uso Cannabis em rituais.   

No Brasil, o trabalho do Lúcio Mortimer e Padrinho Sebastião foram fundamentais para distinguir o uso da Santa Maria como planta de poder enteógena e tratamento terapêutico, fortalecendo a consciência sobre a necessidade da descriminalização do cultivo e consumo da Santa Maria para uso individual, coletivo e associativo.  

A dissertação de mestrado da Jéssica Rocha, “Experimentações Enteógenas: Santa Maria e Exu no Santo Daime *, de forma brilhante, vai além da história da consagração da “Santa Maria” na igreja do Santo Daime, traçando um paralelo entre o buscador Carlos Castañeda e seu mestre xamã Don Juan com o daimista L. Mortimer e o P. Sebastião, com a introdução e aceitação da cannabis no sincretismo religioso, a princípio no Santo Daime e hoje nos mais diversos contextos religiosos, espirituais e de cura. 

Historicamente, o uso da cannabis em rituais data em cerca de 12.000 anos atrás, segundo descobertas científicas*. Perto das “Flaming Mountains”, um ponto turístico na região autônoma de Xinjiang-Uighur, na China, um homem de meia-idade, de aparência europeia, foi encontrado enterrado com uma bolsa contendo grande quantidade de cannabis. Uma análise laboratorial revelou que o homem transportava quase 800 g de cannabis cultivada, com elevado teor de Δ9-tetrahidrocanabinol (THC). A tumba estava associada à cultura Tochariana, uma população nômade que falava uma língua indo-européia, agora extinta, retratada pelos chineses, como tendo olhos azuis e cabelos louros. As análises botânicas e fitoquímicas indicaram que a cannabis não foi meramente colhida de plantas selvagens, mas sim cultivada a partir de variedades de cannabis selecionadas por humanos com base no seu potente conteúdo de THC.  

Após o último período glaciar, as sementes de cannabis acompanharam a migração dos povos nômades e as trocas comerciais. Esta migração conjunta é um exemplo de uma simbiose mutuamente benéfica, na qual os humanos e uma planta contribuíram para a propagação um do outro pelo planeta, provendo além do contato com o divino, cordas, tecidos, medicina e alimento. 

A dispersão da cannabis sobre a Euroásia a partir de um ponto central, é comprovada pelo fato de a planta ser designada por palavras relacionadas na maioria das línguas desta enorme massa de terra. O cânhamo inglês e o Hanf alemão são etimologicamente cognatos do grego κάνναβις, do latim cannăbis, do italiano canapa e do russo konoplja. Mesmo as línguas não indo-europeias usam palavras relacionadas, por exemplo, qunnab (بﱠﻧُ ﻗ) em árabe, uma língua semítica, kendir em turco, e kanap’is (კანაფის) em georgiano, uma língua caucasiana. 

O uso ritualístico da cannabis acompanhou a sua dispersão pelo mundo, com registros de uso em praticamente todas as civilizações desde o paleolítico, incluindo os Semitas Mesopotâmicos, Assirios, Persas, Judeus, Árabes, Turcos e passando pelos Chineses, Mongois, Indus, Europeus como gregos e romanos, até chegar nas américas no séc XVI, incluindo as religiões de matriz africana, rastafaris, indígenas e daimistas. 

Em relação ao uso medicinal da cannabis, existem registros de antes da Era Comum na China, Egito e Grécia (Heródoto), e mais tarde no Império Romano (Plínio, o Velho, Dioscórides, Galeno). No século XIX, orientalistas como Silvestre de Sacy e médicos ocidentais que entraram em contato com as culturas muçulmana e indiana, como O’Shaughnessy e Moreau de Tours, introduziram o uso medicinal da cannabis na Europa. A estrutura dos principais fitocanabinoides, o CBD (canabidiol) o tetrahidrocanabinol (THC), foram determinadas em Israel por Mechoulam e Gaoni entre 1963 e 1964. Estas descobertas abriram as portas para muitos dos desenvolvimentos subsequentes no campo da pesquisa do sistema endocanabinóide (SEC). 

Nesse sentido, após 12.000 anos de uso da cannabis como enteógeno em rituais espirituais e cura, a planta sagrada foi proibida e criminalizada no mundo todo. A Santa Maria foi desrespeitada, vilipendiada, deturpada, alterada, apropriada, julgada e condenada. E somente após os avanços no conhecimento científico do SEC, o debate sobre a descriminalização e regulação da cannabis no mundo avançou para um novo contexto. No Brasil, apesar do debate intenso na sociedade, que em sua maioria apoia a liberação da cannabis medicinal *11, temos um poder legislativo conservador, atrasado, alicerçado no cristianismo e que não atende os anseios sociais.   

Com o avanço da agenda pró cannabis medicinal, faz-se necessário acender também o debate sobre a consciência e consequências do uso da Cannabis como planta de poder enteógena capaz de nos curar fisicamente, emocionalmente, mentalmente e espiritualmente, que conecta o ser humano a si mesmo e ao Todo. 

Portanto, o uso ritualístico da cannabis como Planta de Poder também deve ser um direito garantido para todas as pessoas e “Hannas Diambas” que desejam de modo consciencioso consagrar a Santa Maria. 

As opiniões veiculadas nesse artigo são pessoais e de responsabilidade de seus autores.

André Skortzaru* é especialista em cannabis medicinal, advogado e presidente da CAA-Cannabis Amiga Associação.

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*1 Fibromialgia: Sociedade brasileira de reumatologia: Fibromialgia – Definição, Sintomas e Porque Acontece. A síndrome da fibromialgia (FM) é uma síndrome clínica que se manifesta com dor no corpo todo, principalmente na musculatura. Junto com a dor, a fibromialgia cursa com sintomas de fadiga (cansaço), sono não reparador (a pessoa acorda cansada) e outros sintomas como alterações de memória e atenção, ansiedade, depressão e alterações intestinais. https://www.reumatologia.org.br/orientacoes-ao-paciente/fibromialgia-definicao-sintomas-e-porque-acontece/Uma característica da pessoa com FM é a grande sensibilidade ao toque e à compressão da musculatura pelo examinador ou por outras pessoas. 

*2 Contracultura: TRAÇOS DA CONTRACULTURA NA CULTURA BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1960. Autor Felipe Flávio Fonseca Guimarães. Contracultura é um conceito, uma categoria específica, utilizada para designar uma série de práticas e movimentos culturais juvenis nas décadas de 1950 e principalmente 1960 nos Estados Unidos e que foi paralelamente adotada em outros lugares do mundo. A contracultura é fruto de uma sociedade opressora, sendo praticada, reivindicada por jovens que fugiram da padronização da cultura social do ocidente após a segunda guerra mundial. Esse termo difundiu durante muito tempo no senso comum a idéia de juventude transgressiva, porém o trataremos aqui sob outra ótica, a da produção e ação cultural. Pois, compreendemos que os jovens responderam a esta sociedade estandardizada não somente através de idéias, mas também de ações, mostrando ao mundo o que almejavam. Chromeextension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340743615_ARQUIVO_ArtigoContracultura-ANPUH.pdf 

*3 “Forças e Poderes” "Fitoenergética - A Energia das Plantas no Equilíbrio das Almas", autor Bruno Gimenes, pela Luz da Serra Editora. 

*4 Plantas Psicoativas Autor Henrique Carneiro A natureza das plantas psicoativas. Tomando como referência a expressão “plantas alucinógenas”, o historiador Henrique Carneiro (2002) define-as como um grupo específico de plantas psicotrópicas que se diferencia dos sedativos (como o ópio), dos excitantes (como o café e a cocaína), ou dos inebriantes (como o álcool). Psicoativos e saberes religiosos: reflexões sobre um campo de estudos, autora Maria Betânia Barbosa Albuquerque* Doutora em Educação pela PUC/SP, com pós-doutoramento pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, PT. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Trav. Benjamin Constant, 551, aptº 802, Reduto, Belém-Pará, CEP: 66053040. E-mail: <mbetaniaalbuquerque@uol.com.br>. 

*5 Plantas medicinais A planta medicinal é a espécie vegetal, cultivada ou não, utilizada com propósitos terapêuticos. Por exemplo, o guaco (Mikania glomerata, Spreng.) empregada no tratamento da tosse (BRASIL, 2011). https://mooc.campusvirtual.fiocruz.br/rea/medicamentos-da-biodiversidade/planta_medicinal_e_droga_vegetal.html 

*6 Alucinógenos https://pt.wikipedia.org/wiki/Droga_alucin%C3%B3gena 

*7 Psicodélicos A Odisséia Psiconáutica de H. Carneiro e Uso Rituais de Plantas de Poder. 

*8 Livro “O uso ritual das plantas de poder” Organização: Beatriz Caiuby Labate e Sandra Lucia Goulart. https://www.mercado-de-letras.com.br/livro-mway.php?codid=155 

*9 Dissertação Mestrado USP Experimentações Enteógenas: Santa Maria e Exu no Santo Daime, dissertação de mestrado de filosofia da Jéssica Rocha. 

*10 History of cannabis and the endocannabinoid system. Marc-Antoine Crocq, MD . Author information Copyright and License information PMC Disclaimer Marc-Antoine Crocq, Maison des Adolescents, Mulhouse, France; CAMUHA, University of Upper Alsace, Mulhouse, France; *Marc-Antoine Crocq, MD, Psychiatrist, Maison des Adolescents, 8 rue des Pins, 68200 Mulhouse, Francemoc.liamg@qcorceniotnacram