A injustiça de um sistema: a prisão de um terapeuta canábico e a luta por regulamentação no Brasil

Injustiça e luta pela regulamentação: a prisão de Márcio Pereira, terapeuta canábico, expõe falhas do sistema penal e a urgência de mudanças. O advogado Felipe Nechar analisa os desafios da transferência entre estados e propõe medidas para humanizar o sistema prisional

Publicada em 20/03/2025

A injustiça de um sistema: a prisão de um terapeuta canábico e a luta por regulamentação no Brasil

O terapeuta canábico Marcio Roberto esteve preso por mais de 3 anos por transportar óleo canabidiol e sofreu com morosidade da justiça (Foto: Isabela Menis)

 

Por anos, Márcio Roberto Pereira dedicou sua vida a levar alívio e dignidade a pacientes que buscavam a cannabis medicinal como última esperança para suas condições de saúde. No entanto, em um país onde a regulamentação ainda caminha a passos lentos, sua missão foi brutalmente interrompida por um sistema que ainda confunde cura com crime.

 

WhatsApp Image 2025-03-11 at 17.44.01.jpeg
Marcio e Fernanda tem uma história de mais de décadas juntos e foram abordados pela PRF enquanto levavam óleo para o padrinho idoso do casal (Foto: Arquivo Pessoal)


Era uma manhã como outra qualquer quando Márcio e sua companheira, Fernanda Peixoto, foram abordados pela Polícia Rodoviária Federal em Itapuã do Oeste, Rondônia, em dezembro de 2018. No carro, transportavam 100 gramas de flores de cannabis e seis frascos de óleo que seriam entregues ao padrinho de Márcio, um idoso debilitado no Acre. 

O casal foi revistado e permaneceu na beira da estrada das 8h às 16h, até serem levados para a delegacia de Porto Velho, onde prestaram depoimento. A justiça, pesou os frascos junto aos vidros e os acusou de portar 790 gramas de "maconha líquida", o que os enquadrou no crime de tráfico interestadual de drogas. A prisão de Márcio foi definitiva, enquanto Fernanda foi liberada posteriormente por ser mãe de uma menor. Seis meses depois, o padrinho de Márcio faleceu sem receber o tratamento que poderia ter amenizado seu sofrimento.


Sobrevivendo ao sistema


Márcio enfrentou 3 anos e 3 meses em regime fechado, seguido de mais 1 ano e 6 meses em regime semiaberto em Marília/SP, cidade em que cresceu. O período mais cruel foi passado em Rondônia, um dos estados com o sistema prisional mais violento do país. "Passei por muitos presídios, vi a violência extrema entre detentos e da própria polícia. Levei dois tiros de borracha, passei por incontáveis procedimentos de tortura, onde ficávamos nus, sentados sob o sol por horas, enquanto os guardas pisavam em nossas cabeças. Era um inferno", relembra.


As condições sub-humanas iam além da violência: a superlotação, a falta de água potável e a sujeira tornavam a sobrevivência uma luta diária. Durante esse período, Márcio contraiu malária duas vezes, sendo deixado em um quarto isolado, delirando, por quatro dias sem qualquer assistência médica. "Cheguei a perder 10 quilos e quase morri", conta.


Apesar dos apelos da defesa, que apresentou até mesmo a receita médica do paciente que receberia o óleo, a justiça ignorou os fatos. O sistema não revisou a pena, e Márcio passou anos esquecido dentro do cárcere.


A mobilização e a força da sociedade civil


 

Marcio_Livre.png
Há 3 anos, amigos, familiares e comunidade canábica criou o Movimento Marcio Livre para tentar conscientizar o judiciário (Foto: Reprodução)

A história de Márcio comoveu a comunidade canábica e mobilizou associações, advogados e parlamentares. A comoção chegou às ruas e à grande mídia, sendo pauta até mesmo na revista Veja. "Quando a matéria saiu, os próprios presos vibraram e aplaudiram. Foi um momento marcante", recorda. Apesar da pressão social, o processo seguiu lento, e a condenação de 7 anos e 7 meses permaneceu inalterada por longos cinco anos.


Para o advogado especialista em Direito Civil e Criminal, Felipe Nechar, a transferência de Márcio de Rondônia para São Paulo foi um processo burocrático e complexo, marcado por entraves legais e institucionais. “A Lei de Execução Penal (LEP) permite a transferência por razões humanitárias, como a saúde do preso ou de familiares, mas há casos em que a morosidade do sistema impede que esse direito seja garantido com celeridade”, pontua o advogado.


 

WhatsApp Image 2025-03-18 at 15.58.56.jpeg
Para Nechar, é preciso ter um sistema que dê mais dignidade e apoio na reabilitação. (Foto: Guilherme Moraes)

Nechar também ressalta que o sistema prisional brasileiro enfrenta um "estado de coisas inconstitucional", como reconhecido pelo STF no RE 635.659. Ele defende medidas urgentes para melhorar as condições carcerárias, como inspeções regulares, penas alternativas para crimes não violentos e programas de reinserção social. "O encarceramento em massa só reforça desigualdades e agrava a violência. Precisamos de um sistema que priorize a dignidade humana e a reabilitação", conclui.


O legado de uma injustiça


 

DSC07368.jpg
"A nossa luta é para ajudar a salvar vidas e aliviar dores", diz Marcio. (Foto: Isabela Menis)

 

Se por um lado o sistema falhou com Márcio, por outro, sua história despertou uma nova força na luta pela cannabis medicinal no Brasil. Fernanda Peixoto, sua companheira, tentou transformar a dor da prisão em resistência e fundou a Associação Canábica Maria Flor, que hoje atende mais de 30 mil pacientes em todo o país.


"Nós fomos confundidos com traficantes e pagamos um preço altíssimo por isso. Mas hoje, a nossa luta ajuda a salvar vidas, aliviar dores de muitas mães que lutam para dar qualidade de vida a seus filhos, e isso nos dá força para continuar", afirma Márcio.


A regulamentação da cannabis no Brasil avança lentamente, mas histórias como a de Márcio escancaram a urgência da mudança. "A criminalização da maconha mata todos os dias, principalmente nas comunidades periféricas. Precisamos de informação, precisamos ensinar o sistema endocanabinoide nas faculdades. A ciência precisa validar o que nossosciência precisa validar o que nossos ancestrais já sabiam há milhares de anos”, diz Marcio.


Já para o advogado, para que uma regulamentação da cannabis medicinal no Brasil avance de forma justa e eficaz, é essencial estabelecer um marco legal que autorize o cultivo associativo, garantindo que os pacientes tenham acesso sem depender de tópicos ou do mercado ilegal. “É fundamental criar protocolos para a análise científica das apreensões, evitando que os pacientes sejam tratados como crimes. A integração entre saúde, segurança e agricultura também se faz necessária para análise de políticas públicas e treinamento de agentes para reconhecimento de cultivos autorizados. Por fim, o investimento em pesquisa com cultivares adaptadas ao clima brasileiro ajudaria a embasar decisões com dados científicos, em vez de estigmas", defende Nechar.


Uma história que se repete


A trajetória de Márcio não é um caso isolado. Inúmeras vidas foram transformadas por situações extremas de prisão e condenação injusta, revelando a urgência de uma política pública que garanta acesso seguro à cannabis medicinal sem o risco de criminalização.


 

DSC07343.jpg
Fernanda e Marcio fizeram da dor a luta para ajudar muitas famílias (Foto: Isabela Menis)

Hoje, ao lado de Fernanda, Márcio segue na linha de frente da luta, levando conforto e qualidade de vida a milhares de brasileiros. E enquanto o Brasil não regula a cannabis medicinal de forma justa, terapeutas, pacientes e famílias continuam expostos a uma legislação falha que os coloca entre o direito à saúde e o rótulo de criminosos.
 

A história de Márcio Pereira está longe de ser apenas sobre um homem que foi preso injustamente. É a história de um país que precisa escolher entre punir ou curar.