Entre o afeto e a verdade: como falar sobre cannabis com os filhos
"O segredo está no vínculo de confiança, e não na ocultação", diz a historiadora Luisa Saad ao refletir sobre como pais podem conversar com os filhos sobre cannabis com honestidade, afeto e consciência social
Publicada em 12/07/2025

Confiança não se esconde: por que conversar sobre cannabis é um ato de cuidado | Imagem: Reprodução IA
“Meu pai fuma maconha e é um cara legal.” Essa frase, que a historiadora e pesquisadora Luisa Saad traz com a serenidade de quem revisitou a própria infância com o olhar atento de uma mãe, carrega uma potência desconcertante perante os olhos da sociedade. É também uma chave para pensar o desafio que muitos pais e mães enfrentam hoje: como falar sobre a cannabis com seus filhos, sem medo, moralismo e mentiras.

“Eu lembro que o cheiro da maconha que meu pai tinha quando me abraçava, era um cheiro que me trazia conforto. Me trazia afeto. Não era um cheiro que afastava, era um cheiro que me dizia: tá tudo bem”, relembra.
No Brasil dos anos 1990, em que palavras como “maconha”, sinônimo de cannabis, eram estigmatizadas, essa memória ganha contornos ainda mais simbólicos. Na mesma época em que Lisa Simpson identificava o cheiro do baseado na jaqueta do Otto, mas nunca recebia uma explicação honesta de Marge e Homer, Luisa descobria que seu pai fumava cannabis e que ela podia perguntar sobre isso, porque era só perguntar.
Essa liberdade de diálogo, rara para a época, foi o primeiro passo para que Luisa enxergasse a incoerência entre o afeto do pai e as imagens violentas do telejornal. “Veio a imagem do camburão, do policial, da apreensão… mas meu pai era carinhoso, cozinhava, gostava de plantas, cuidava dos cachorros. Ele me dava colo”, diz a historiadora que ainda estava na segunda infância na época.
O silêncio também educa, mas mal
Luisa cresceu em uma família branca, de classe média, em São Paulo, e se mudou aos 15 anos para Salvador. Não demorou muito para perceber que o uso da maconha, que em sua casa era tratado com naturalidade, fora moldado socialmente para punir determinados corpos e territórios. “O proibicionismo não chegou na minha infância como em tantas outras. Mas essa consciência veio cedo. Fomos abordados pela polícia uma vez, eu e meu pai, e eu lembro de pensar que: se fôssemos negros, talvez essa história tivesse outro fim”, pontua.
É por isso que ela defende que a parentalidade contemporânea precisa se armar de coragem e afeto, porque, se os pais não falam, a rua fala. E muitas vezes fala com medo, com violência, com mitos. “É como sexo: o silêncio nunca protegeu ninguém. Ao contrário, desinforma, machuca e distancia”.
A honestidade é uma forma de amor
Hoje, aos 40 anos, ela é mãe, ativista e doutoranda. E não tem dúvida: as conversas mais importantes com os filhos são aquelas que nascem da escuta e da confiança. “Se a primeira coisa que um jovem ouve da família é ‘droga mata’, ele nunca mais volta a conversar sobre isso ali. Porque um dia ele experimenta, gosta, não morre, tudo perde credibilidade”, analisa.
Segundo ela, o diálogo sobre drogas deve acontecer desde sempre, com naturalidade, em pequenas conversas do dia a dia. “Não é uma palestra. São trocas. É falar a verdade: que existem efeitos legais, mas que também existem riscos. Que há um tempo biológico em que o uso precoce pode afetar o sistema nervoso. Que liberdade exige responsabilidade”, descreve.
E, acima de tudo, que há contextos históricos e políticos por trás da proibição. “A guerra às drogas nunca teve a ver com saúde. Sempre teve a ver com controle, com racismo, com a tentativa de extinguir práticas culturais de determinados povos. E a cannabis está nesse enredo”, lembra Luisa.
A maconha que o afeto não criminaliza
A memória do pai fumando em casa, com serenidade e afeto, atravessa toda a trajetória de Luisa. Foi esse ponto de partida, radicalmente simples, que despertou sua curiosidade, sua consciência política e seu compromisso com uma nova política de drogas.“Foi ele que me ensinou que não existe contradição entre cuidar e usar. Ele cuidava da casa, dos bichos, da gente. E fumava. E era legal. O que contradiz isso é a narrativa da guerra, não a vivência”, conta.
Hoje, ela acredita que os pais que fazem uso medicinal ou recreativo da cannabis podem, e devem, abordar o tema com os filhos com honestidade e segurança. O segredo está no vínculo de confiança, e não na ocultação. “Não se trata de normalizar o uso como se não houvesse riscos. Mas também não dá para demonizar. O importante é o diálogo. É saber que uma criança que se sente segura para perguntar é uma criança que se sentirá segura para dizer, quando algo der errado. Isso é prevenção real”, aconselha.
Cannabis: o futuro se conversa em casa
A historiadora defende que a educação antiproibicionista começa na infância, com linguagem acessível, mas embasada. E que o uso de jogos, filmes, quadrinhos e até dinâmicas escolares pode ser um caminho potente para isso. “Temos que ensinar nossos filhos a pensar criticamente sobre por que determinadas plantas são proibidas. Quem decide isso? Com que interesses? E por que o álcool é vendido no supermercado, mesmo sendo a substância que mais mata?”, finaliza.
Assim como Luisa acredita que essa consciência histórica é uma forma de proteção, é importante sabermos como conversar com nossos filhos, que são parte do futuro, sobre a maconha, seja ela no âmbito recreativo ou medicinal.
Ambiguidades a parte, a cannabis é uma realidade do passado que beira o futuro, não só da nossa geração como a das próximas. Por isso, listamos algumas dicas para pais terem com seus filhos:
Dicas práticas para um diálogo consciente sobre cannabis com seus filhos
Informe-se antes de informar: busque fontes confiáveis, leia, ouça, pergunte. É importante falar com base em evidências e não em medos ou suposições.
Adapte a linguagem à idade: com crianças, o foco pode ser no cuidado com substâncias e no respeito ao corpo; com adolescentes, a conversa pode abordar efeitos, riscos, escolhas e contextos históricos.
Fale em pequenas doses: não espere "a hora certa". Faça da conversa sobre drogas um assunto possível no cotidiano familiar, como qualquer outro.
Evite o tom moralista: diga a verdade. Que a cannabis pode gerar sensações prazerosas, sim, mas que há riscos, especialmente no uso precoce, quando o córtex pré-frontal ainda não está formado.
Construa um espaço de confiança: uma criança que sente liberdade para perguntar será, amanhã, um adolescente que não tem medo de pedir ajuda.
Contextualize politicamente: falar sobre a história da criminalização é parte da educação antiproibicionista. Ensina sobre racismo, desigualdade e direitos, bem como o uso ancestral de plantas e outras medicinas naturais.
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