Entre a justiça e a prisão: quando o tratamento com cannabis se torna um crime

Pacientes que dependem da cannabis medicinal enfrentam a judicialização e, em muitos casos, a prisão. Entenda os desafios do acesso, os impactos legais e as histórias de quem luta pelo direito ao tratamento no Brasil

Publicada em 08/02/2025

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Jéssica Camargo | Imagem: Arquivo Pessoal

A discussão sobre a cannabis medicinal no Brasil tem ganhado espaço significativo nos últimos anos, especialmente devido à crescente demanda de pacientes por alternativas terapêuticas e à lentidão das regulamentações governamentais. 

 

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Esse cenário tem levado muitas famílias a recorrerem à Justiça para obter autorização para o cultivo e uso da cannabis medicinal. Nesse contexto, trouxemos a história de Jéssica Camargo, fundadora da Associação de Cannabis Medicinal Divina Flor, que ilustra os desafios enfrentados por pacientes e ativistas nessa luta por acesso seguro ao tratamento.

Um forte abalo emocional gerado pela perda de seu querido pai foi um dos principais motivos para Jéssica, hoje com 36 anos, desenvolver a Síndrome de Bell aos 19. Ela estava no trabalho quando sentiu seu rosto entortar repentinamente. Cogitaram ser um choque térmico, mas que, com o passar do tempo, não se normalizou. “Passei por médicos, realizei exames, tomei alopáticos e fiz fisioterapia, mas nada ajudou… só depois de usar o óleo de cannabis que comecei a notar melhoras significativas em meu rosto”, relata.

O caminho até chegar ao canabidiol não foi momentâneo. Jéssica teve de ser forte para passar por aquela fase difícil e começou a utilizar a cannabis fumada para tratar a depressão que desenvolveu, o que a aliviou em sensações paliativas para uma “melhora” - se é que isso é possível! “A maconha foi uma aliada para mim, me ajudou a entender a vida por outro ângulo e a enfrentar todos os problemas que eu estava passando naquele momento, além de elevar minha autoestima, afinal meu rosto não era mais o mesmo”, conta.

 

Da patologia a alternativa medicinal

 

A Síndrome de Bell (ou paralisia de Bell) é uma condição neurológica caracterizada pela paralisia ou fraqueza súbita dos músculos de um lado do rosto. Ela ocorre devido à inflamação ou compressão do nervo facial (nervo craniano VII), que é responsável pelo controle dos músculos da face. Essa inflamação prejudica a transmissão dos sinais nervosos, resultando em dificuldade ou incapacidade de mover os músculos faciais. “Não conseguia piscar e nem morder”, relembra.

Mas, o que essa história tem a ver com a judicialização no Brasil? Muita coisa! Dez anos depois, em uma viagem à capital paulista, Jéssica participou de um encontro na Cultive - Associação de Cannabis e Saúde, onde coletou relatos de muitas pessoas que sobreviviam por conta da cannabis medicinal. “Ouvir aquelas mães atípicas mexeu muito comigo e acendeu uma chama de querer me aprofundar no estudo canábico, principalmente do uso do óleo enquanto remédio. Quando vi que ele pode oferecer alívio e qualidade de vida às pessoas, não parei e quis entrar de cabeça nessa história”, pontuou.

 

A prisão

 

A troca com outros pacientes fez Jéssica se mobilizar para criar um grupo de estudos sobre a cannabis medicinal. Na época, ela fez alguns cursos de produção do extrato da cannabis e, por morar em Mato Grosso do Sul, teve acesso a algumas plantas no Paraguai, país de fronteira com o Brasil. “Nessas idas e vindas para o Paraguai, acabei sendo presa entre Ponta Porã/MS e Campo Grande/MS, em meados de fevereiro de 2019. Foi um baque para mim e para todos os meus amigos que estavam envolvidos nessa construção”.

A prisão de Jéssica impactou a todos que a conheciam. Ela já era mãe do pequeno João Miguel com dois anos de idade na época. Durante nosso papo, ela afirmou que se não tivesse passado por essa apreensão, talvez não teria chegado onde chegou, ou seja, na fundação da Associação de Cannabis Medicinal Divina Flor, a primeira do estado de MS que atende hoje, mais de 3 mil pacientes em todo o país.

“O episódio da prisão foi apenas o primeiro passo do que viria acontecer. Foi ali, naquela cela 3x3 com 18 meninas que eu tive a força necessária para continuar, pois passei por inúmeras humilhações, inclusive dos policiais desde a hora da abordagem até ser detida naquela delegacia suja e, depois, ter ido para o presídio”, disse.

Por uma semana, ela esteve no presídio de segurança máxima. Nesse tempo, ouviu relatos de mulheres e também se empoderou. “Foi uma semana que eu e meus familiares vamos levar para o resto das nossas vidas, mas que mudou completamente o que eu e meu grupo de estudos estávamos fazendo. Quando saí da prisão, voltei muito mais forte e decidida a ajudar quem precisa, aquele episódio não podia ter sido em vão”, acredita.

 

O grito de liberdade


A luta de Jéssica reflete um fenômeno maior: a judicialização da cannabis medicinal no Brasil. Como a regulamentação ainda é limitada e desigual, muitas famílias são obrigadas a buscar autorização judicial para cultivar a planta ou importar produtos derivados.


Só em 2023, em decisão unânime, dois desembargadores e uma juíza da 5° turma do Tribunal Regional Federal da 3° Região, concederam a liminar de Jéssica, que a deu o direito de plantar a cannabis para uso medicinal. “A gente tem exemplos próximos, a Fernanda e o Márcio (Associação Canábica Maria Flor), o Marco Carboni da CuraPRO, até mesmo o Paulinho Coelho (Movimento Cannabis Sem Fronteiras) passaram por essa situação de serem presos e de ter que sair, lutar e provar que a prisão não é o fim, ela é apenas o começo; então eu acho que essa união só fortaleceu a visão sobre a judicialização da cannabis medicinal no Brasil”, explica.
 

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Marcela Sanches

Segundo a advogada criminalista Marcela Sanches, integrante da Rede Reforma, o número de habeas corpus concedidos para cultivo de cannabis com fins terapêuticos tem crescido exponencialmente, superando 6 mil casos ao ano. “Essa judicialização tem sido essencial para garantir o tratamento de pacientes e afastar o risco de prisão ou apreensão das plantas, mas também expõe desigualdades estruturais no acesso à saúde”, argumenta a criminalista.


Ainda segundo Marcela, muitos pacientes chegam traumatizados depois de enfrentar todo tipo de constrangimento, inclusive a prisão por tráfico. Geralmente os pacientes já esgotaram todas as opções terapêuticas disponíveis no mercado, quando decidem fazer uso dos produtos à base de Cannabis. 

“Ouço relatos de pacientes que precisaram trocar de médico e de advogado para conseguir realizar e demandar pelo tratamento. Mas na minha opinião, os casos mais críticos são dos pacientes que já foram presos por cultivar Cannabis para tratar a própria saúde”, comenta.


Sem dúvida, o principal obstáculo para a regulamentação da cannabis medicinal ainda está no preconceito histórico em relação à planta. Como Jéssica apontou, durante nossa entrevista, a cannabis ainda é vista de maneira distinta conforme o perfil socioeconômico do usuário. 

"Hoje, maconha é legal para gente branca e rica, mas para gente pobre da favela ainda é crime. Essa desigualdade também se reflete na acessibilidade ao tratamento, pois apenas quem tem recursos financeiros e conhecimento jurídico consegue recorrer à Justiça para garantir o direito ao uso medicinal”, pontua Jéssica.


Entre a burocracia e o direito à saúde


Até 2015, o uso terapêutico da cannabis e de suas substâncias era totalmente proibido, apesar de as convenções internacionais sobre controle de substâncias já preverem a possibilidade de uso medicinal para o alívio da dor e do sofrimento.


“A regulamentação só avançou devido à forte mobilização social e ao aumento expressivo de ações judiciais buscando garantir o acesso aos produtos à base de cannabis. Hoje, é possível adquiri-los por meio da importação ou diretamente em farmácias e drogarias, conforme previsto na RDC 660/2022 e na RDC 327/2019. No entanto, ainda há uma grande lacuna na legislação, já que o cultivo doméstico e associativo segue sem regulamentação, dificultando o acesso e expondo muitos pacientes a riscos desnecessários”, explicou a advogada.


Habeas Corpus


Sobre o habeas corpus, documento que assegura direitos ao cidadão, Marcela reforça que o paciente deve reunir o máximo de documentos médicos possíveis para demonstrar sua condição de saúde e incluir a melhora que alcançou com o uso do óleo de cannabis medicinal, juntamente com a necessidade de manutenção do tratamento.

“Com a documentação em mãos o paciente poderá buscar um advogado com experiência em habeas corpus para cultivo de Cannabis com fins terapêuticos, bem como em defesas criminais caso aconteça alguma intercorrência no curso do processo”, informa Marcela.

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Jéssica Camargo, fundadora da Associação de Cannabis Medicinal Divina Flor, junto com a família em uma plantação de cannabis. Imagem: Arquivo pessoal.

O habeas corpus foi, sem dúvida, o grito de liberdade de Jéssica e, segundo ela, a virada de chave que precisava para se manter e dar vida à associação ajudando outras pessoas. “Eu preciso do remédio todos os dias e ter um documento me garantindo é muito libertador; é liberdade de ir e vir, é liberdade de justiça também, porque não sou traficante e ter um juiz entendendo que eu posso plantar e produzir o meu próprio remédio é sim, uma sensação de liberdade de justiça…Então, a nossa luta continua para que todas as pessoas possam ter liberdade de ter acesso ao tratamento e ter qualidade de vida.”, defende Jéssica.


Outros obstáculos


Outro desafio enfrentado é a ausência de uma regulamentação clara para o cultivo e distribuição de produtos derivados da cannabis. Apesar de algumas vitórias, como a liminar de Jéssica para cultivar cannabis para produzir seu próprio remédio, a Associação Divina Flor ainda enfrenta barreiras legais para operar plenamente. Atualmente, a entidade utiliza o modelo de "associados produtores", permitindo que membros individuais cultivem e compartilhem o óleo com outros pacientes, contornando restrições legais.

 

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Imagem: Arquivo Pessoal 


Para garantir que os pacientes não precisem recorrer à Justiça para ter acesso ao tratamento, Jéssica defende uma regulamentação que contemple todas as realidades: "acredito que qualquer um que quiser e tiver condições pode plantar na sua casa um número X de plantas para produção do seu remédio". 
Caso isso não seja possível, a regulamentação das associações, por exemplo, poderia ser uma solução intermediária, garantindo que grupos organizados possam continuar distribuindo óleo de cannabis de maneira segura e legal.
Outro aspecto fundamental para avançar na regulamentação é a criação de políticas públicas que integrem a cannabis medicinal ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Embora o Estado de São Paulo já distribua óleo de cannabis para algumas enfermidades, esse acesso ainda é muito limitado e não contempla todas as condições para as quais a planta pode ser benéfica”, avalia Jéssica.


A luta continua…


A luta pela legalização da cannabis medicinal no Brasil ainda enfrenta desafios significativos, mas avanços estão ocorrendo graças à mobilização de pacientes, associações e profissionais do direito. 
Histórias como a de Jéssica demonstram a importância da resistência e da organização coletiva para garantir que todos os brasileiros tenham acesso a um tratamento digno e eficaz. 


A judicialização tem sido um caminho necessário, mas uma regulamentação abrangente e justa é fundamental para assegurar direitos e eliminar desigualdades no acesso à cannabis medicinal.