Mulheres na pesquisa com cannabis: desafiando paradigmas históricos e ocupando espaços
Pesquisadoras de sucesso falam sobre como é ser uma mulher no campo das pesquisas com cannabis
Publicada em 08/03/2025

Da esquerda para a direita Priscila Gava Mazzola, Carollina Mariga, Beatriz Marti Emygdio e Andrea Gallassi. Imagem: Portal Sechat
Ao longo da história, as mulheres vêm lutando por igualdade de oportunidades e reconhecimento em todos os campos. No cenário canábico, esse desafio ganha contornos ainda mais intensos, misturando tabus sociais e preconceitos enraizados sobre a planta.
A pesquisa com cannabis, apesar do imenso potencial terapêutico e social, carrega o peso de estigmas que dificultam o reconhecimento e a valorização das descobertas. Essa realidade se reflete na experiência de pesquisadores que enfrentam obstáculos específicos relacionados ao preconceito e a persistente desigualdade de gênero.
No Dia Internacional da Mulher, comemorado em 08 de março, quatro importantes pesquisadoras brasileiras falam sobre como é ser mulher nesse campo tão promissor e desafiador.
Ocupando novos espaços
Conforme o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o número de mulheres é maior nas bolsas de mestrado (54%) e doutorado (53%) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para Beatriz Emygdio, presidente do Comitê Permanente da Cannabis da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) esse dado reflete não apenas uma tendência crescente de qualificação e ganho de espaço no mercado de trabalho, mas também a capacidade feminina de lidar e conciliar diversas atividades simultaneamente.
Beatriz lembra que a Embrapa levou 50 anos para ter uma mulher como presidente. "Não acredito se tratar de uma questão de superioridade. É apenas um processo natural no qual as mulheres vêm conquistando seu espaço. Deixaram de ser vistas apenas como mães e donas de casa e passaram a assumir papéis importantes e de destaque em todas as áreas", comenta.
Segundo Priscila Mazzola, farmacêutica, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (FCF/Unicamp) e colunista do Portal Sechat, a ciência tem sido cada vez mais ocupada por mulheres e ver essa representatividade em lideranças de grupos e laboratórios, como o Laboratório de Farmacotécnica e Cuidado em Saúde (LAFATECs), coordenado por Priscila, é um sinal de que barreiras estão sendo quebradas.
Diferentes vertentes movimentam a pauta
Beatriz Emygdio acredita que o caminho para desmistificar o tema e colocar o Brasil na vanguarda da produção de cannabis é longo. “Será necessário promover um bom diálogo com a sociedade, sensibilizar governos e formadores de opinião, envolver órgãos de fomento para auxiliar e aprimorar novas estruturas para pesquisas com cannabis, fortalecer redes existentes e estabelecer novas redes de pesquisa”, afirma.
Priscila Mazzola ressalta que a paixão pela ciência e o desejo de desmistificar a cannabis são forças motrizes para muitas pesquisadoras. Ela destaca que a possibilidade de auxiliar pessoas com condições de saúde diversas – aproveitando o imenso potencial da planta – também impulsiona essas profissionais e o setor da cannabis como um todo.

Carollina Mariga, médica veterinária e doutoranda na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que ingressou no mundo canábico devido à falta de alternativas para o tratamento do seu gato - que, infelizmente, precisou passar por uma eutanásia -, hoje se percebe realizando um sonho. Pioneira em estudos de dermatite atópica canina, Carolina lidera importantes pesquisas sobre o tema.
Mas, para alcançar esta posição, foi necessário enfrentar burocracias, desafios para a obtenção de autorizações e a falta de apoio institucional. “Mesmo após muitos perrengues, prazos apertados e dificuldades em absolutamente tudo, deu certo. Não contavam com a determinação e resiliência de uma mulher”.
Superando barreiras de gênero

Apesar dos avanços, as pesquisadoras ainda se deparam com a herança de uma ciência historicamente masculina. Segundo Andrea Gallassi, professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, é necessário "atrevimento" para realizar produções científicas, especialmente aquelas ligadas à cannabis.
“Quando você fala em cientista, pensa em um homem – isso é uma construção histórica. No caso das pesquisas com cannabis, existem barreiras adicionais, pois esse universo sempre foi representado por homens, tanto na produção de extração quanto na pesquisa dos usos terapêuticos e sociais”, comenta Galassi. “As mulheres têm que enfrentar e ir para cima, demonstrando que, sim, nós somos capazes de pesquisar o que quisermos”.
A pesquisadora também destaca a importância da visibilidade, principalmente em eventos e publicações científicas, incentivando uma distribuição mais equitativa no cenário científico. “Os organizadores de congressos ou publicações científicas precisam pensar: como podemos promover uma distribuição mais equitativa em relação à questão de gênero? Já que há muitas mulheres fazendo ciência sobre esse tema”.
Já Beatriz, afirma que os desafios inerentes à espécie Cannabis sativa L. são compartilhados entre homens e mulheres. "Trabalhar com cannabis exige coragem, acima de tudo”, comenta.
Luta por você, pelos seus e pelos pacientes
Andrea Gallassi ressalta o desgaste gerado pela briga travada com a construção histórica: “A mulher sempre acaba tendo que trabalhar em dobro para demonstrar sua notoriedade, enquanto os homens podem fazer algo de forma mediana e ainda assim serem lembrados primeiro”. Ela ressalta que as pesquisadoras precisam ser mais rigorosas em seus métodos científicos e se dedicar intensamente, principalmente ao conciliar a maternidade com a carreira.
“No auge da pesquisa que conduzi – a mais desafiadora, um ensaio clínico com o uso de canabidiol para pessoas com dependência de crack – eu estava grávida.”, continua Andrea ao falar sobre mais uma barreira enfrentada pelas mulheres.
Sua filha nasceu durante o ensaio clínico e, nos primeiros meses, participou do recrutamento dos pacientes. “Eu, com minha filha no colo, atendendo os pacientes e realizando todos os procedimentos”, lembra.
Beatriz relembra que a luta pelo uso medicinal da cannabis foi travada por mães que buscavam na planta a salvação para seus filhos. “Somente a força de uma mãe, desesperada para diminuir o sofrimento de um filho, é capaz de enfrentar batalhas tão duras, complexas e desafiadoras”, comenta.
Para ela, essa iniciativa possibilitou que muitas mulheres assumissem protagonismo em diversas áreas, não só na ciência. “Hoje elas ganham destaque também na academia, na indústria farmacêutica, na articulação de políticas públicas e nos processos de regulamentação e definição de marcos regulatórios com cannabis”, conclui.
O futuro da pesquisa canábica feminina
Antes de olhar para frente, Andrea Gallassi ressalta a importância de revisitar sua trajetória para encontrar motivação e seguir produzidos. “Quando você começa a fazer pesquisa científica de alto nível, com repercussão internacional por meio de publicações, ser mulher confere um grande respeito e notoriedade. É algo muito importante e marcante para nós”, acrescenta.

Para continuar impulsionando a ciência, Beatriz aposta no critério, no rigor e no cuidado adotado pelas mulheres. Ao longo desse período, tive a prioridade de trabalhar com pesquisadores de diferentes instituições, universidades e unidades da Embrapa, todas, sem exceção, justiça aos princípios da isenção e da imparcialidade na construção do conhecimento científico”
Já Carollina Mariga e Priscila Mazzola enxergam o futuro das pesquisadoras canábicas com esperança - e muito compromisso. "Cada vez mais, vemos as mulheres conquistando a maioria das vagas, seja na graduação, residência ou pós-graduação. Espero que esse movimento continue, que as mulheres superem qualquer dificuldade e conquistem o devido lugar", diz Carollina.
“O futuro é de mais mulheres liderando descobertas, ocupando espaços e mostrando que, juntas, podemos transformar a ciência e a sociedade”, afirma Prscila.
*Andrea Gallassi é professora associada da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas. É mestre e doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e possui dois pós-doutorados internacionais: um pelo Centro de Dependência Química e Saúde Mental da Universidade de Toronto, no Canadá, e outro pela Divisão de Doenças Infecciosas e Saúde Global da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia San Diego.
*Beatriz Emygdio é pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e presidente do Comitê Permanente da Cannabis da Embrapa. É Doutora em Ciência e Tecnologia de Sementes pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
*Carollina Mariga é formada em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e mestre em Clínica Médica de Pequenos Animais, com ênfase no uso clínico da cannabis na dermatologia, também pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente, é doutoranda na mesma linha de pesquisa e pós-graduanda pela Sociedade Brasileira de Estudos em Cannabis (SBEC).
*Priscila Gava Mazzola é professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (FCF/Unicamp). Ela é formado pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em tecnologia-bioquímica farmacêutica e aprimoramento no MIT.