A "fome" do mercado português   

“Já não há mais dúvidas, a questão agora é quando”, diz especialista sobre a legalização do uso adulto da cannabis em Portugal

Publicada em 03/10/2023

A "fome" do mercado português   

A discussão sobre a legalização do uso adulto da cannabis em Portugal está ganhando força e especialistas afirmam que a questão não é mais se, mas quando isso acontecerá. O Partido Socialista, atualmente no poder, criou um grupo de trabalho para analisar essa possibilidade, deixando os defensores da causa portuguesa otimistas. 

Humberto João Nogueira, um empreendedor luso-angolano dedicado às indústrias da cannabis em Portugal, acredita que a legalização é iminente. Em entrevista exclusiva ao portal Sechat, ele fornece uma visão abrangente sobre a regulamentação que envolverá a posse e o consumo de cannabis no país europeu. 

Como irá funcionar a lei? 

As propostas de legalização apresentadas pelos partidos Bloco de Esquerda e Iniciativa Liberal contemplam modelos que incluem tanto o comércio quanto o cultivo para consumo próprio. Já o modelo alemão, que Portugal está considerando, prevê a legalização do cultivo pessoal antes do comércio para uso adulto, incluindo a possibilidade de clubes associativos, semelhante ao modelo espanhol. 

“A regulamentação precisa equilibrar o acesso dos investidores à indústria de cannabis recreativa sem excessiva tributação e burocracia, para evitar o fortalecimento do mercado informal. Além disso, é fundamental compreender como Portugal regulamentará a presença de THC em alimentos, incluindo fitocanabinoides não-psicotrópicos como o CBD e o CBG”, diz Nogueira. 

Segundo o empreendedor, a legalização poderá unificar as três indústrias relacionadas à Cannabis Sativa L.: cânhamo industrial, cannabis medicinal e cannabis de uso adulto, podendo também impulsionar a pesquisa científica sobre a planta, algo que o governo português se comprometeu a fazer com a lei da cannabis medicinal em 2018. 

É preciso cautela 

Quem também falou ao portal foi a advogada e ativista Ana Margarida Leitão Ferreira, natural da região do Douro em Portugal e responsável jurídica pela associação Cannadouro: 

“A famosa Lei 30/2000 que trouxe Portugal aos holofotes legislativos, determinou a descriminalização da posse e consumo de drogas no país, reconhecendo que os comportamentos aditivos têm por base um distúrbio de saúde, fazendo com que os legisladores entendessem que a punição criminal não seria capaz de contribuir para a redução do consumo”, diz a especialista que explica: 

“Na prática em Portugal, apesar do que comumente se julga, consumir cannabis na via pública não é legal, só não é crime! Parece um contrassenso, mas o que a lei fez foi trazer uma versão humanizada das regras distinguindo o consumidor do fornecedor ilícito ou traficante”.  

No entanto, Ana ressalta que o grande problema está na qualificação da cannabis como substância perigosa, ao lado de substâncias como a heroína, cocaína, anfetaminas, metadona e outras tratadas da mesma forma, mesmo sabendo que o consumidor se cannabis pode não ser o consumidor de nenhuma das outras substâncias.  

“Este enquadramento é um legado que prosperou desde o proibicionismo e que ainda perdura na nossa lei, mesmo com uma clara determinação legal pela Lei n.º 33/2018, de 18 de julho que veio regulamentar a entrada da cannabis e seus derivados com potencial terapêutico admitindo que, afinal esta planta tem um potencial muito positivo e com benefícios, muitos desconhecidos, para o ser humano. Contudo, ainda permanece como uma substância perigosa e proibida aos olhos da nossa lei e sociedade”, afirma a jurista.  

A nova Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro pretende clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo adulto, estabelecendo prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando a “Lei da droga” Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro.  

“Isto é, com a nova regra, caso fique comprovado que estas substâncias se destinam ao consumo próprio, se afasta assim a tendência perfilhada nos tribunais portugueses para criminalização por consumo nos casos em que a quantidade apreendida exceda as 10 doses diárias definidas pela Lei 30/2000”, finaliza a advogada. 

A nova regulamentação pode atrapalhar o mercado medicinal? 

Uma questão relevante é como a legalização do uso adulto afetará o mercado medicinal. De acordo com Humberto, historicamente, a oferta recreativa tende a reduzir a necessidade de intermediação médica para prescrição da cannabis, devido a facilidade de acesso ao mercado recreativo. No entanto, essa mudança também pode facilitar o acesso dos pacientes à cannabis medicinal, tornando-a mais acessível.  

“É importante notar que muitos cultivadores de cannabis medicinal em Portugal estão considerando a mudança para o mercado recreativo, o que poderia aumentar significativamente suas receitas”, ressalta Nogueira. 

Os portugueses estão a favor da liberação? 

Não existe uma sondagem recente feita diretamente aos portugueses sobre o tema, mas existem dados do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) que apontam para que os novos consumidores da planta tenham aumentado em 27% até 2017, e se mantido estáveis no que toca aos atuais consumidores.  

Segundo Nogueira, “a legalização do uso medicinal em 2018 favoreceu um sentimento positivo junto da população, que cada vez mais questiona, ‘porquê que exportamos cannabis para pacientes alemães e israelitas, mas, no entanto, continuamos a prender pessoas com um ou duas plantas em casa?’. Há de fato um sentimento crescente pro-legalização nos portugueses, sobretudo nas faixas etárias com maior acesso à informação”. 

Humberto João Nogueira, é um empreendedor que atua nas indústrias de cannabis agroindustrial desde 2014, iniciando em Angola para fins medicinais e industriais. Desde 2017, concentrou-se no cânhamo industrial em Portugal e, a partir de 2022, lidera o projeto HEMPHASIZE na indústria de cannabis medicinal.

Portugal tem também uma outra atenuante a favor da legalização, uma vez que desde 2001 o país descriminalizou a posse e consumo de uma determinada quantidade de qualquer substância ilícita, distinguindo assim o usuário de narcotraficante.  

“Está política teve um enorme sucesso nacional e ainda hoje muito aplaudida internacionalmente como exemplo de uma correta abordagem ao consumo de substâncias narcóticas, e este creio que seja o principal argumento que favorece um sentimento mais positivo face a legalização do uso adulto de cannabis. Ao mesmo tempo, os portugueses sabem que o país vive largamente do turismo, e as receitas do turismo canábico certamente haverão de ser o maior impulsionador da aceitação geral da planta”, destaca o empresário. 

Em resumo, a legalização do uso adulto da cannabis em Portugal está em discussão, com muitas nuances a serem consideradas na regulamentação. Os exemplos internacionais, as perspectivas dos especialistas como Humberto João Nogueira e Ana Margarida Leitão Ferreira, além da opinião pública, desempenharão um papel importante na moldagem desse futuro legal.