Mosaico da cannabis: estados com leis próprias podem sair na frente na regulamentação

Enquanto o governo federal adia a entrega das regras para o cultivo, estados avançam com legislações próprias e constroem um arcabouço que pode antecipar os rumos da regulação nacional

Publicada em 31/10/2025

Mosaico da cannabis: estados com leis próprias podem sair na frente na regulamentação

O estudo do advogado Mauricio Barroso Júnior analisou 20 leis, entre estaduais e a distrital, aprovadas de 2016 a 2024. Após a pesquisa, Santa Catarina e Bahia, também aprovaram leis estaduais de cannabis. Imagem: Canva Pro

Um novo artigo revela como os estados brasileiros estão construindo, de forma discreta mas acelerada, um robusto arcabouço legal para a legislação da cannabis. O movimento focado no acesso a medicamentos à base da planta ocorre em forte contraste com o pedido de adiamento do prazo para entrega da regulamentação do cultivo, do governo federal.

O estudo do advogado Mauricio Barroso Júnior analisou 20 leis, entre estaduais e a distrital, aprovadas de 2016 a 2024. Após a pesquisa, Santa Catarina e Bahia, também aprovaram leis estaduais de cannabis.

A pesquisa mapeou uma grande diversidade normativa e uma notável mudança no perfil político dos defensores da causa. O estudo, qualiquantitativo, revela que o movimento ganhou força exponencial. Após a iniciativa pioneira do Distrito Federal em 2016, o ritmo acelerou com quatro novas leis em 2022 e um pico de treze em 2023, mostrando o empenho crescente das assembleias legislativas. A pesquisa não analisou a funcionalidade das leis.

 

Um mosaico de leis

 

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Mauricio Barroso Júnior, advogado e pesquisador. Imagem: Arquivo pessoal

O estudo destaca que não existe um modelo único. As leis variam drasticamente em escopo, criando um verdadeiro mosaico regulatório pelo país. O Piauí, por exemplo, tem uma legislação abrangente, sendo o único a prever as três principais formas de acesso: fornecimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), distribuição via associações e permissão para cultivo doméstico - vinculada à autorização federal ou judicial.

A maioria das leis, 17 de 20, garante o acesso via SUS. Contudo, Alagoas, Paraíba e Pernambuco focaram em modelos de associações e parcerias, sem previsão de dispensação direta pelo sistema público.

A visão sobre o uso da planta também difere. O Maranhão possui a lei mais completa, contemplando o uso medicinal, veterinário, científico, educacional, industrial e o cultivo. A lei maranhense inova ao incluir a agricultura familiar, quilombola e tradicional com práticas agroecológicas. Em contrapartida, legislações do DF, Mato Grosso do Sul e Roraima são mais restritivas, focando em apenas uma finalidade.

Barroso Júnior cita o Maranhão como um exemplo que avança na pauta da reparação. "O texto trata do cânhamo e seus produtos aplicados à agricultura quilombola, agricultura indígena", explica. No entanto, o pesquisador faz uma ressalva. "Na parte do documento sobre acesso gratuito está tudo vetado. Vários artigos foram cortados da lei final", explica.

Para o advogado, a análise levanta questões sobre a intenção por trás da legislação da cannabis. "Entendo que esses normativos tinham que vir com um propósito de reparação, porque é indiscutível o poder econômico e a potência do mercado canábico", afirma.

 

A vantagem da legislação estadual

 

Enquanto os estados avançam, a regulamentação nacional para o cultivo segue em banho-maria. O governo federal solicitou ao STJ mais 180 dias para entregar uma proposta, enquanto a DNA Soluções, entidade parte do projeto, sugerem um "sandbox regulatório".

Nesse vácuo, os estados que já legislaram saem na frente. Segundo Barroso Júnior, essas leis não batem de frente com a União, mas a complementam. "O que os Estados estão fazendo? Eles estão trazendo um normativo complementar". Para o advogado, isso cria um respaldo legal imediato. "Aquele estado que mediante decisão judicial conseguirem aplicar sua lei, saem a frente".

O pesquisador conclui que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não pode ignorar essa realidade estadual. "A Anvisa não pode deixar de olhar para as legislações que já estão sendo feitas nos estados. E ela tem que conectar-se com essas normativas já existentes."

 

Direita assume protagonismo nas leis da cannabis

 

Talvez o dado mais surpreendente da pesquisa seja a quebra de um paradigma. Contrariando o senso comum de que a pauta da cannabis seria exclusiva do campo progressista, o estudo revela que a direita política tem sido a principal força motriz por trás dessas leis.

Embora a proposição de projetos tenha sido próxima - oito da direita, sete da esquerda e cinco do centro -, a sanção pelos governadores revelou uma disparidade. Governadores de direita sancionaram 13 das leis, enquanto os de esquerda e centro sancionaram quatro e três, respectivamente. Todas as propostas partiram do Poder Legislativo, sem nenhuma iniciativa direta do Executivo estadual.

"Eu acho que a caneta do parlamentar de direita é diferente da tinta do parlamentar de esquerda", pontua Mauricio Barroso Júnior. "Acho que são formas distintas de pensar no paciente e na população", completa.