Especialistas rebatem Cremers e defendem evidências científicas no uso medicinal da cannabis
Declarações do conselho médico do RS vão na contramão de estudos nacionais e internacionais, além da prática clínica já adotada em diversos países
Publicada em 07/08/2025

Durante o encontro, a conselheira Silzá Tramontina, destacou que não existem estudos conclusivos sobre os efeitos positivos da cannabis a longo prazo no tratamento de transtornos ou doenças psiquiátricas Imagem: Divulgação Cremers
Médicos e pesquisadores reagiram ao posicionamento do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), que reafirmou sua oposição ao uso medicinal da cannabis, especialmente em tratamentos de saúde mental. Para especialistas, a manifestação da entidade ignora uma base crescente de evidências científicas e clínicas, tanto no Brasil quanto no exterior.
A declaração do Cremers ocorreu durante uma reunião com a vereadora de Porto Alegre, Tanise Sabino (PTB), em 28 de julho. Na ocasião, a conselheira Silzá Tramontina argumentou que ainda não há estudos conclusivos sobre os efeitos positivos da cannabis no tratamento de transtornos psiquiátricos.
Ela também mencionou confusões frequentes entre a planta e os diferentes tipos de canabidiol disponíveis no mercado, além de destacar a complexidade dos quadros relacionados ao espectro autista.
O presidente do Cremers, Régis Angnes, reforçou a necessidade de mais rigor científico: “Não adianta o médico apresentar apenas os laudos, é preciso publicar tudo isso cientificamente”.
O parecer da Câmara Técnica de Psiquiatria, assinado por Tramontina e publicado em abril de 2025, sustenta a posição do conselho com base em supostos riscos à saúde associados ao uso da cannabis.
Estudos e práticas clínicas contestam posicionamento
A posição do Cremers contrasta com uma série de pesquisas científicas reconhecidas por entidades como a Fiocruz e com a prática clínica adotada em diversos países.
Para a médica Mariane Ventura, parte da resistência ainda está ligada ao estigma que envolve a planta. “Infelizmente, a comunidade médica reproduz falas pautadas basicamente no preconceito. Sim, precisamos de mais estudos — muitos deles já estão acontecendo. Essa afirmativa não é pautada no que a ciência vem mostrando”.
Em Nota Técnica publicada em 2023, a Fundação Oswaldo Cruz destacou o potencial terapêutico dos canabinoides — como o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC) — em diversas condições clínicas, incluindo dor crônica, epilepsia refratária, espasticidade por esclerose múltipla, efeitos adversos da quimioterapia e distúrbios neurológicos como Parkinson.
Cannabis medicinal no tratamento da esclerose múltipla e do autismo

O psiquiatra e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Dr. Wilson Lessa, destaca que já há evidências clínicas e revisões científicas demonstrando os benefícios do uso de formulações à base de cannabis, especialmente a combinação de CBD e THC, em casos de esclerose múltipla e transtornos comportamentais no espectro autista (TEA).
Segundo ele, estudos com o medicamento nabiximols (Sativex) — aprovado em países da Europa desde 2005 — comprovam eficácia no controle de sintomas como dor neuropática e espasticidade, sem prejuízos cognitivos, mesmo em uso prolongado.
No caso do autismo, Lessa destaca que Israel já autorizou o uso de canabinoides como primeira linha terapêutica para transtornos comportamentais em pessoas com TEA.
“Mesmo que nem todos os estudos sejam conclusivos, já há evidências suficientes em algumas áreas. Israel é um exemplo: desde janeiro de 2023, o uso de canabinoides foi autorizado como primeira escolha para tratar o autismo e os transtornos comportamentais nas demências, o que demonstra um avanço importante no reconhecimento desses tratamentos", explica.
Pesquisas brasileiras apontam avanços consistentes
No Brasil, estudos acadêmicos também vêm confirmando os benefícios da cannabis. Uma revisão sistemática conduzida por pesquisadores da UFMG e UnB acompanhou, durante um ano, 18 pacientes com TEA tratados com extrato de cannabis rico em CBD. Destes, 15 apresentaram melhora significativa em sintomas como convulsões, distúrbios do sono e crises comportamentais.
Mais recentemente, o Projeto Alticam, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), acompanhou adultos com autismo tratados com óleo full spectrum. Após 30 dias, observou-se uma redução de quase 28% nos sintomas, com relatos positivos sobre sono, alimentação, ansiedade e socialização:
“A cannabis floresce esperança onde os tratamentos convencionais já falharam tantas vezes”, declarou a coordenadora da pesquisa, professora Micheline Donato.