Do cultivo ao paciente: os bastidores da segurança e qualidade dos produtos à base de cannabis no Brasil

A segurança e a eficácia dos produtos à base de cannabis dependem de uma cadeia integrada que envolve químicos, biomédicos, farmacêuticos e médicos — profissionais que garantem, em cada etapa, a qualidade, a estabilidade e a confiança no tratamento do paciente

Publicada em 13/10/2026

Do cultivo ao paciente: os bastidores da segurança e qualidade dos produtos à base de cannabis no Brasil

Imagem Ilustrativa: Canva Pro

À medida que o mercado de cannabis medicinal amadurece no Brasil, cresce também a exigência por padrões rigorosos de qualidade, estabilidade e rastreabilidade. Por trás de cada frasco de óleo, cápsula ou extrato, há uma cadeia complexa de processos científicos e regulatórios que visam garantir que o paciente receba um produto seguro, eficaz e consistente.

Até outubro de 2025, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já havia aprovado 30 produtos à base de cannabis, distribuídos entre 18 empresas autorizadas a atuar no país. As formulações desses produtos apresentam variações que refletem diferentes finalidades terapêuticas e perfis de uso. As principais diferenças estão na concentração dos canabinoides, no tipo de extrato e na forma de administração

Esses produtos podem chegar até o paciente mediante prescrição médica e são adquiridos em farmácias via RDC 327, garantindo que o tratamento ocorra dentro das normas de segurança e controle sanitário. Veja a lista completa:

Ainda de acordo com dados da Anvisa atualizados em setembro de 2025, os pacientes que optam pela importação de produtos à base de cannabis têm acesso a cerca de 600 opções disponíveis, conforme a Nota Técnica nº 58/2025, que regulamenta o processo individual previsto na RDC nº 660/2022. Esse volume expressivo reflete a expansão do mercado internacional, que já conta com mais de 500 empresas autorizadas. Veja a lista completa: Para acessar produtos da RDC 660, o paciente precisa de prescrição médica e autorização da Anvisa, seja para importação individual ou aquisição de produtos nacionais registrados.

Dos 672 mil pacientes de cannabis medicinal no Brasil em 2024, 315 mil utilizam produtos regulamentados pela RDC 660, 208 mil optam por medicamentos registrados na RDC 327 e 147 mil são atendidos por associações.

Da semente ao extrato: a base da segurança
 

O ponto de partida está no cultivo. Mesmo que o Brasil ainda não tenha regulamentado o plantio nacional para fins medicinais, a expectativa ficou para março de 2026 após o Governo Federal pedir adiamento do prazo ao STJ (Superior Tribunal e Justiça). A maioria dos produtos importados disponíveis no país vem de países como Colômbia, Uruguai, Canadá e Estados Unidos — locais onde a produção é rigidamente controlada. Cada etapa, desde a seleção genética até a colheita, passa por padrões de boas práticas agrícolas (GACP), que asseguram a pureza e a ausência de contaminantes como metais pesados, pesticidas e fungos.

Segundo Wellington Briques, médico prescritor de produtos à base de cannabis, “a segurança e a eficácia começam na qualidade do produto. Em cannabis medicinal, isso significa ter a padronização em mg/mL de canabinoides, com lotes consistentes. Sem padronização e CoA, não há como prescrever com precisão — e medicina sem precisão vira tentativa-e-erro desnecessária e antiética.”

 

Manipulação, controle de qualidade e padronização

 

A farmacêutica Géssica Miranda explica que a manipulação de produtos à base de cannabis exige rigor técnico e conhecimento dos princípios ativos. “Para que o produto chegue no consumidor final, os responsáveis vão manejando a planta até tornar-se o produto acabado. As principais etapas incluem preparação da matéria-prima, pesagem, moagem, extração dos compostos de interesse e diluição em óleo transportador, como o TCM (triglicerídeos de cadeia média), além da adição de outros ingredientes conforme a formulação do produto, como cápsulas ou cremes”, detalha.

Géssica ressalta que o controle de qualidade é crucial. “Ele começa antes mesmo de manipular o material vegetal. Desde análises de solo para detectar contaminantes, até testes de canabinoides, pureza e perfil de terpenos no produto final. Durante o preparo, procedimentos de operação padrão, conferência dupla, controle de temperatura e proteção contra luz são fundamentais. Após o envase, amostras contraprova garantem rastreabilidade e segurança. O paciente precisa confiar que cada gota do frasco tem a dose certa, na forma certa.”

O médico Wellington Briques reforça a importância da padronização: “Se a concentração varia de um frasco para outro, a mesma ‘dose’ deixa de ser a mesma — e o paciente sente diferenças no efeito. Rastreabilidade por número de lote é essencial: se surgir um problema, sei exatamente de onde veio e como agir.”

 

Boas práticas e desafios técnicos

 

Segundo Géssica Miranda, os laboratórios seguem normas da Anvisa, como a RDC 67/07 sobre Boas Práticas de Manipulação, complementadas pela RDC 327/19 e a RDC 512/2021, além da Portaria 344/98, que regula substâncias controladas como CBD e THC. “A inclusão da Cannabis na Farmacopeia Brasileira é um avanço importante, pois estabelece critérios oficiais de qualidade para matérias-primas e produtos finais, padronizando processos de manipulação”, explica.

Ela alerta, porém, para desafios específicos: “Diferente de fármacos sintéticos, extratos vegetais podem variar de lote para lote, mesmo padronizados. Isso exige controle muito criterioso e atualização constante sobre interações, farmacocinética e estabilidade dos canabinoides.”

Wellington complementa, reforçando que a consistência entre lotes é vital para eficácia terapêutica. “Na epilepsia, por exemplo, o controle de crises depende de CBD em dose estável. Qualquer variação entre lotes pode levar a recidiva. Por isso, insisto em mesma marca, mesma concentração e mesmo perfil de lote, garantido pelo CoA.”

 

Estabilidade e conservação

 

Os canabinoides podem sofrer degradação por oxidação, luz e variações térmicas. Testes de estabilidade de longo prazo e acelerados avaliam concentração dos ativos e presença de contaminantes. Temperatura, luz, oxigênio e umidade são os principais fatores que afetam a estabilidade. O THC, por exemplo, pode se converter em CBN, alterando efeitos terapêuticos.

Segundo a Miranda, a educação do paciente é parte do processo: “Além dos testes laboratoriais, orientamos conservar o frasco fechado, longe da luz e do calor, respeitando a validade indicada.”

 

Embalagem e transporte

 

A farmacêutica destaca que a embalagem é estratégica para preservar a qualidade: “Frascos âmbar de vidro, com conta-gotas graduado e vedação, protegem contra luz, evitam oxidação e permitem dosagem segura. No transporte, evitar calor excessivo é essencial. O produto começa a perder qualidade quando sai do controle técnico, reforçando a necessidade de educação do paciente.”


Garantia ao paciente e rastreabilidade

 

Para Géssica Miranda, a rastreabilidade depende da integração entre indústria, laboratórios e farmacêuticos. “A padronização depende de bons fornecedores com extratos que tenham CoAs confiáveis, rastreáveis e estabilidade comprovada. O farmacêutico técnico confere cada lote, compara com o anterior e garante que o perfil fitoquímico esteja dentro do esperado. O farmacêutico clínico atua como ponte com paciente e prescritor, acompanhando a terapia.”

Ela acrescenta que, apesar das exigências da Anvisa (RDC 660/22 e SNGPC), ainda não há sistema nacional unificado, o que faz com que laboratórios criem protocolos internos e controles próprios. “O controle de lotes é rastreado desde a matéria-prima até o produto final, com resultados analíticos documentados. É esse olhar do farmacêutico que garante segurança em cada gota e torna nossa presença essencial nesse mercado em construção”, afirma.

O médico Wellington Briques conclui destacando a importância da confiança: “Para o paciente, a segurança vai além da embalagem. Ela começa na confiança — confiança de que o produto foi testado, padronizado e prescrito corretamente. A transparência das empresas e a educação médica são determinantes para consolidar o uso da cannabis medicinal de forma segura e cientificamente embasada.”

 

A química dos canabinoides no processo de segurança e qualidade 

 

A segurança e a qualidade dos produtos à base de cannabis dependem, em grande parte, de um aspecto que passa despercebido por muitos: a estrutura molecular dos canabinoides. Segundo o químico industrial Ubiraci Lima, doutor em Vigilância Sanitária e pós-doutor em Tecnologia de Formulações, são justamente essas diferenças na composição das moléculas que determinam os efeitos terapêuticos e a forma como o organismo reage a cada composto.

“A mínima variação na arquitetura molecular de um canabinoide é suficiente para alterar completamente o seu comportamento biológico”, explica o conselheiro do Conselho Federal de Química.

Entre os mais de 120 canabinoides identificados na planta Cannabis sativa, o Tetrahidrocanabinol (THC) e o Canabidiol (CBD) são os mais conhecidos e estudados. Ambos compartilham a mesma fórmula molecular (C₂₁H₃₀O₂) e o mesmo peso molecular (314,5 g/mol), além de apresentarem três grupos estruturais principais: terpênico, fenólico e alquil.

A diferença essencial, segundo Lima, está em uma pequena modificação: no THC, uma das hidroxilas fenólicas se liga à porção terpênica, formando um éter cíclico — estrutura que não aparece no CBD. Essa alteração aparentemente simples muda todo o padrão de interação da molécula com os receptores do corpo humano.

 

A química por trás do efeito terapêutico

 

Mesmo com fórmulas semelhantes, THC e CBD produzem efeitos terapêuticos muito distintos. Para compreender o motivo, é preciso recorrer à Química Medicinal, campo que combina princípios da Química, Biologia e Farmacologia para estudar as interações entre fármacos e receptores biológicos.

O pesquisador recorda o modelo proposto pelo químico Emil Fischer, em 1902, conhecido como o modelo da “chave e fechadura”. Nesse conceito, cada molécula ativa (a chave) deve ter formato e propriedades eletrônicas compatíveis com o receptor específico (a fechadura), para que a interação resulte em uma resposta terapêutica.

“No caso do CBD, há liberdade de rotação em algumas ligações químicas, o que permite que a molécula adote uma forma tridimensional mais aberta”, detalha Lima. “Essa configuração favorece a ligação com receptores de formato cruzado, associados, por exemplo, à modulação imunológica e à ação anti-inflamatória.”

Já na molécula de THC, o éter cíclico impede essa rotação, mantendo a estrutura mais rígida e linear — característica que favorece a ligação com os receptores CB1, localizados principalmente no sistema nervoso central, responsáveis pelos efeitos psicoativos do composto.

 

Estrutura, efeito e sinergia

 

As descobertas da Química Medicinal reforçam o que diversos estudos vêm demonstrando: a relação entre estrutura e atividade é determinante para o efeito terapêutico dos canabinoides. Essa relação é conhecida como SAR (Structure-Activity Relationship) — conceito fundamental no desenvolvimento de medicamentos.

Além disso, pesquisas recentes mostram que os canabinoides podem atuar em sinergia, fenômeno chamado de “efeito entourage”, em que compostos como o CBD e o THC potencializam as ações terapêuticas um do outro, equilibrando seus efeitos e reduzindo reações adversas.

“É nesse ponto que a química mostra seu papel estratégico: entender a interação entre moléculas é o caminho para desenvolver formulações mais seguras, eficazes e previsíveis”, afirma Lima.

 

Padronização: a base da segurança

 

Compreender as diferenças estruturais é essencial para a padronização dos produtos à base de cannabis. A ausência de controle sobre a proporção de cada canabinoide pode alterar o efeito final e comprometer a segurança do paciente.

“A padronização química é o que garante que o paciente receba o mesmo resultado terapêutico a cada dose. Isso só é possível com rigor analítico e validação laboratorial”, ressalta o especialista.

Essa preocupação é reforçada pela recente ampliação da Rede Brasileira de Laboratórios Analíticos em Saúde (Reblas), habilitada pela Anvisa para realizar análises de produtos derivados da cannabis. Segundo Lima, esse é um passo fundamental para consolidar padrões de qualidade no mercado brasileiro.

 

Reblas reforça controle de qualidade na indústria da cannabis

 

A habilitação de laboratórios analíticos pela Anvisa para analisar produtos de cannabis reforça o controle de qualidade no setor. A medida foi oficializada pela Resolução nº 3.459, publicada em 8 de setembro, que incluiu a categoria de produtos de cannabis no escopo do Centro de Qualidade Analítica Ltda., integrante da Rede Brasileira de Laboratórios Analíticos em Saúde (Reblas).

Com isso, o laboratório passa a oferecer ensaios de controle de qualidade (ECQ) em produtos derivados da planta, conforme prevê o Art. 5º da RDC nº 928/2024, que determina que apenas laboratórios habilitados na Reblas podem realizar esse tipo de análise.

Atualmente, 16 laboratórios possuem habilitação vigente para análise de produtos de cannabis — metade deles localizados em São Paulo.

O diretor científico da Sechat, Dr. Pedro Pierro, destacou a relevância da medida.

“A possibilidade de garantir a qualidade dos produtos à base de cannabis por meio da RDC 660, com apoio dos laboratórios da Reblas, é fundamental para médicos e pacientes.”


Ricardo Pettená, diretor executivo da Carmen's Medicinals, reforça a importância da certificação: "Ter o certificado Reblas transmite credibilidade e segurança para a classe médica na hora de prescrever”, afirma.

Para ele, a certificação também ajuda a diferenciar o “joio do trigo”, estimulando o mercado a se adaptar e oferecer produtos da RDC 660 com padrão da indústria nacional.

“Antes, trabalhávamos apenas com o certificado COA, que, entendemos, não tem a mesma credibilidade perante o mercado e a própria Anvisa. O Reblas evidencia quais empresas realmente têm compromisso com a qualidade e quais não têm”, conclui.