Lacuna na medicina por desconhecimento dos médicos sobre o sistema endocanabinoide pode ser a oportunidade do futuro
Apenas 48 mil médicos no Brasil prescreveram produtos à base de cannabis, refletindo a falta de ensino sobre o sistema endocanabinoide nas faculdades de medicina
Publicada em 21/03/2025

Imagem ilustrativa: Canva Pro
Apesar de vital para o organismo humano, o sistema endocanabinoide ainda é amplamente desconhecido por muitos médicos. A trajetória da cannabis ao longo da história é tão rica quanto às suas propriedades medicinais e industriais. Na China, por volta de 2.700 aC, o livro Pen Ts'ao, considerado a primeira farmacopeia do mundo, já documentava o valor terapêutico da planta. Durante séculos, a cannabis também foi amplamente utilizada na fabricação de tecidos, cordas e até em rituais religiosos. Outras histórias curiosas sobre a cannabis você encontra no 4º Guia Sechat da Cannabis disponível gratuitamente para download.
No início do século XX, porém, os Estados Unidos começaram a mudar sua postura em relação à planta. Em 1930, a criação do Departamento Federal de Narcóticos deu início a uma campanha de desinformação contra a cannabis. A divisão criada para combater o uso de cocaína e ópio, acabou incluindo a cannabis na lista de substâncias proibidas. No Brasil, a Lei do Pito do Pango de 1830 penalizou desproporcionalmente os negros escravizados que consumiam cannabis, refletindo o forte preconceito racial da época.
O preconceito e a desinformação não ultrapassa a barreira dos problemas sociais. Especificamente, a falta de conhecimento sobre o sistema endocanabinoide tem impactado diretamente a formação médica no Brasil. Até recentemente, nenhuma universidade oferecia disciplinas específicas sobre o tema. Em 2023, a Faculdade de Medicina do ABC, em São Paulo, trouxe um marco significativo para a educação médica com o lançamento da disciplina de Endocanabinologia. Idealizado pelo renomado neuropediatra Rubens Wajnzstejn, esta iniciativa pioneira foi aceita pela reitoria da universidade, solidificando assim a relevância da pesquisa e do estudo da cannabis na medicina contemporânea.
Flávio Geraldes, um dos colaboradores e professores da disciplina, expressou entusiasmo. "Representa um avanço significativo na compreensão das aplicações médicas da cannabis. É uma oportunidade pioneira de se ensinar o Sistema Endocanabinoide aos alunos". O neurocirurgião Pedro Pierro, diretor-científico da Sechat e colaborador da disciplina, reforça a importância desse estudo acadêmico. “A aprovação da disciplina foi facilitada pela vasta quantidade de estudos e eventos relacionados à cannabis que já foram realizados na Faculdade de Medicina do ABC, proporcionando uma base sólida para a inclusão na série curricular”, ressaltou o médico em entrevista ao Sechat na época.

A medicina canabinoide surge como um campo promissor para profissionais que buscam inovação e conhecimento aprofundado sobre o sistema endocanabinoide, ainda pouco abordado na formação médica tradicional.
Segundo a geriatra Gabriela Mânica, "a lacuna no conhecimento médico sobre o sistema endocanabinoide representa, sem dúvida, uma grande oportunidade para os profissionais que se dedicam à medicina canabinoide."
"Esse sistema é fundamental para a homeostase do organismo, regulando funções como a dor, a inflamação, o sono, o humor e a memória, mas ainda é pouco abordado na formação médica tradicional. Com a crescente evidência científica sobre os benefícios terapêuticos dos canabinoides, os médicos que se especializarem nessa área estarão à frente, não apenas no tratamento de diversas condições, mas também na orientação de outros profissionais e na construção de um novo paradigma na prática clínica", explica.

O Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal, que chega à sua 4ª edição em 2025, desempenha um papel fundamental na educação canábica no Brasil. Reunindo especialistas, pesquisadores e profissionais de saúde, o evento promove debates sobre os avanços científicos, desafios regulatórios e oportunidades no mercado da cannabis medicinal. Com uma programação robusta, o congresso contribui para a capacitação de médicos e farmacêuticos, além de ampliar o acesso à informação qualificada sobre tratamentos e novas aplicações terapêuticas da planta. "Iniciativas como essa ajudam a desmistificar o uso medicinal da cannabis, trazendo mais segurança tanto para médicos quanto para pacientes. À medida que a regulamentação avança e o acesso aos tratamentos se expande, congressos desse tipo se tornam cada vez mais estratégicos para a consolidação da medicina canabinoide no Brasil", destaca Mânica.
A advogada Ana Rossi, que atua no mercado de cannabis medicinal, destaca a relevância da educação canábica para reduzir o estigma e ampliar o conhecimento sobre o tema. "Considero a educação a respeito do tema de extrema relevância. Mesmo desde quando comecei, em 2019, até o presente momento, são pouquíssimos médicos prescritores. Na época, não havia cursos realizados no Brasil, toda informação era advinda de fora. Hoje já vemos diversos cursos na área, tanto para médicos como para demais profissões, o que é um grande avanço, mas que, de qualquer forma, precisa de mais expansão".
A falta de conhecimento entre os médicos se reflete nos números de prescrição. Segundo dados da Close-Up International de 2024, apenas 48 mil médicos prescrevem produtos à base de cannabis no Brasil, um número reduzido considerando o total de aproximadamente 575 mil profissionais ativos na área, sendo cerca 270 mil prescrições para a aquisição dos produtos nas farmácias. O dado evidencia a necessidade urgente de ampliar a capacitação e a inclusão do ensino sobre o sistema endocanabinoide na formação acadêmica dos profissionais de saúde.

A educação sobre cannabis medicinal pode ajudar a reduzir o estigma em torno do seu uso no Brasil. Para muitos profissionais da saúde, a falta de formação acadêmica sobre o tema representa um grande desafio. Atualmente, os médicos que desejam prescrever cannabis precisam recorrer a cursos de extensão e formações independentes para compreender melhor as aplicações terapêuticas da planta.
A ampliação do conhecimento científico sobre o sistema endocanabinoide é essencial para que médicos e pacientes possam tomar decisões mais informadas sobre os tratamentos com compostos da cannabis. Hoje, diversos canabinoides são estudados para melhorar a eficácia terapêutica de diferentes condições de saúde. Iniciativas como a da Faculdade de Medicina do ABC são fundamentais para quebrar barreiras e abrir caminho para uma medicina mais inclusiva e baseada em evidências científicas.
As escolas e universidades desempenham um papel crucial na difusão do conhecimento sobre cannabis e seus usos medicinais. Além da criação de disciplinas específicas, a divulgação científica e o investimento em pesquisas são essenciais para consolidar a cannabis como uma alternativa terapêutica viável. "Acredito que, por meio da divulgação das informações e do foco em pesquisas científicas, podemos avançar muito. Nós, do Mahara, investimos já há alguns anos e apoiamos cientistas da Universidade Federal de Uberlândia sobre os benefícios do CBD para o mal de Alzheimer e dor crônica. Esse avanço científico não somente gera credibilidade na eficácia do tratamento, como quebra estigmas e barreiras", explica Ana Rossi.
A desinformação gera desconfiança e dificulta a adesão a terapias baseadas em cannabis. Por isso, é essencial que profissionais de saúde e a população em geral tenham acesso a informações confiáveis sobre o tema, garantindo que os pacientes busquem produtos regulamentados e certificados para seus tratamentos. "A desinformação muitas vezes gera a descredibilidade no tratamento. Sabemos que ainda há muito preconceito, e é importante não só os profissionais de saúde, mas também a população, ter conhecimento do produto, até mesmo para procurarem produtos regulamentados e certificados", conclui Ana Rossi.
Desafios que persistem
A falta de programas educacionais sobre cannabis medicinal ainda limita o acesso dos pacientes aos tratamentos disponíveis no país. Juliana Komel, co-CEO da Alko do Brasil, destaca que a disseminação do conhecimento científico é fundamental para reduzir o estigma e capacitar profissionais de saúde.
O papel da educação na quebra de paradigmas

Formada em farmácia, Juliana conta que sua curiosidade pela cannabis surgiu na universidade, quando percebeu a ausência do tema nas aulas de plantas medicinais. “Eu comecei a ler e estudar sobre planta em fontes confiáveis, como por exemplo, a farmacopeia, tentando até trazer o assunto para dentro da universidade, porém sem êxito”, relata. A experiência nos Estados Unidos, onde observou a diversidade de produtos disponíveis, reforçou seu interesse na área.
No Brasil, a farmacêutica buscou se especializar para levar o tema à empresa onde atua, que hoje desenvolve um projeto voltado ao setor. Para ela, a educação sobre cannabis medicinal precisa abranger todo o ecossistema – desde as pesquisas científicas até a prescrição e dispensação – para garantir informação de qualidade e reduzir o estigma cultural.
A falta de conhecimento entre profissionais de saúde é um dos principais desafios do setor. “Resumidamente, é preciso ter informação de qualidade oriunda das pesquisas científicas para que os profissionais de saúde estejam aptos a prescrever e amparar os pacientes diante dos diversos tipos de tratamento onde seja possível utilizar a cannabis”, explica Juliana.
A especialista ressalta que, sem programas de educação canábica estruturados, o acesso dos pacientes aos produtos regulamentados pela Anvisa se torna ainda mais difícil. Como a legislação impede a divulgação direta dos produtos ao público, a capacitação de médicos e farmacêuticos se torna a principal estratégia para ampliar o conhecimento sobre o tema.

O papel das universidades na difusão do conhecimento
Para Juliana, as instituições de ensino têm um papel central na construção de uma base científica sólida sobre a cannabis. “Eu vejo que o tripé das universidades é baseado em: pesquisa, difusão e extensão. E a meu ver esses são fundamentos inseparáveis”, argumenta.
Apesar dos desafios, a farmacêutica vê oportunidades de avanço. “Felizmente a produção científica está em alta, e várias instituições de renome já estão com cursos relevantes do segmento, inclusive a título de pós-graduação. É fato que ainda encontramos muitos desafios a serem vencidos, mas vejo que é uma grande oportunidade de esclarecimento sobre o tema, e ao final, o importante é que os pacientes sejam beneficiados com um tratamento natural que a cannabis pode promover”, conclui.