“Não consigo aceitar a dor que pode ser aliviada”: veterinária brasileira lança pesquisa sobre cannabis medicinal em Portugal

Entre ciência e sensibilidade, a pesquisadora busca provar que o uso da cannabis pode transformar o cuidado veterinário e aliviar o sofrimento animal

Publicada em 17/10/2025

Veterinária brasileira conduz pesquisa sobre benefícios da cannabis medicinal em Portugal

A veterinária brasileira Karla Pinto pesquisa em Portugal os benefícios da cannabis medicinal em cães e gatos, buscando tratamentos que tragam mais conforto, saúde e qualidade de vida aos animais | Foto: Arquivo Pessoal

Foi ao ver a mãe sofrer com dores crônicas causadas pela fibromialgia que a veterinária brasileira Karla Pinto decidiu que não aceitaria mais o sofrimento, humano ou animal, como inevitável. Essa experiência pessoal moldou sua carreira e a levou a dedicar os últimos dez anos da trajetória profissional à pesquisa da cannabis medicinal em Portugal, onde hoje busca novas formas de aliviar a dor e devolver qualidade de vida a cães e gatos.


Da dor à descoberta: o caminho da compaixão


Com 25 anos de experiência na veterinária, Karla Pinto fez da dor seu principal campo de estudo, e da compaixão, sua maior ferramenta. “A dor sempre foi um desafio central na clínica veterinária que me propus a combater intensamente”, conta. “A convivência próxima com o sofrimento crônico da minha mãe criou em mim uma intolerância inabalável ao sofrimento animal. Não consigo aceitar a dor que pode ser aliviada”, confessa.


Em Portugal, onde vive há mais de duas décadas, Karla encontrou terreno fértil para avançar em sua pesquisa. O país permite o uso e o estudo da Cannabis sativa para fins medicinais, o que abriu caminho para experimentos mais amplos. “Aqui podemos usar medicamentos humanos com diferentes teores de THC em animais, conforme a chamada ‘Lei da Cascata’. Isso nos permite avançar mais rápido do que em países com legislações restritivas, como o Brasil”, explica.


Para ela, os fitocanabinoides representam uma fronteira terapêutica promissora. “Dedicar minha pesquisa a encontrar soluções eficazes para os nossos companheiros animais é a minha forma de dar significado à vida e ao alívio do sofrimento”, afirma.


A ciência por trás da empatia

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A brasileira que não aceita a dor dos animais e aposta na cannabis para aliviar o sofrimento | Foto: Arquivo Pessoal


Karla é coautora, ao lado de João F. Requicha, do artigo “Cannabis sativa in veterinary medicine: Foundations and therapeutic applications”, publicado em 2024 na Canadian Veterinary Journal. O estudo reúne evidências sobre o uso de compostos da planta, como o CBD e o THC, no controle da dor, epilepsia e distúrbios comportamentais em animais.


A pesquisadora explica também que o sistema endocanabinoide (SEC) é a chave para entender como a cannabis atua: “O SEC é um sistema biológico presente em todos os animais, que funciona como um maestro do equilíbrio interno. Ele se ativa diante da dor, do estresse ou da inflamação. Os fitocanabinoides da planta ajudam o organismo a restaurar a homeostase e a aliviar o sofrimento de forma natural”. 

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Ela ressalta, no entanto, que a medicina veterinária ainda carece de estudos aprofundados sobre farmacocinética e segurança em diferentes espécies. “Existe um desejo imenso de prescrever, mas precisamos de mais ciência e menos empirismo”, pondera.


Fred, o boxer que inspirou esperança


Entre os inúmeros pacientes tratados com derivados da cannabis, Karla guarda com carinho o caso de Fred, um boxer de 12 anos diagnosticado com suspeita de tumor ósseo e epilepsia. “Depois que ele começou a usar um extrato rico em CBD, as crises diminuíram e ele voltou a se movimentar com alegria. O mais bonito foi saber que um amigo da tutora, médico e também paciente oncológico, decidiu buscar o mesmo tratamento após ver a melhora de Fred”, recorda.


Fred viveu mais tempo e com qualidade de vida, provando que o cuidado pode se expandir para além da espécie e até inspirar outros seres humanos.


Entre avanços e resistências: o futuro da cannabis veterinária


Apesar dos avanços científicos, Karla reconhece que as barreiras culturais e regulatórias ainda limitam o uso da cannabis veterinária em muitos países. “Precisamos tirar a cannabis do nicho do alternativo e trazê-la para o campo científico. Isso começa com o ensino na graduação e com pesquisa de qualidade”, afirma.


Ela conta que o preconceito ainda se manifesta de forma dolorosa. “Recebi mensagens de colegas dizendo que eu ‘iria para o inferno’ por divulgar o potencial da planta. Isso mostra o quanto o estigma ainda é forte”, diz.


Mesmo assim, a pesquisadora mantém a esperança.“Os fitocanabinoides são uma fronteira terapêutica cheia de possibilidades. E se a ciência tem o poder de aliviar a dor, é nela que quero continuar apostando,  pelos animais e por tudo o que eles representam”, finaliza.