Diretor executivo da Agência Europeia de Drogas alerta para aumento de substâncias sintéticas e questiona futuro do CBD
Alexis Goosdeel da EUDA fala sobre crescimento alarmante no uso de catinonas, opioides como os nitazenos e canabinoides sintéticos, enquanto questiona se o CBD deveria ser tratado como substância precursora
Publicada em 06/06/2025

Aumento do consumo de drogas sintéticas preocupa autoridades europeias, segundo o Relatório de 2025 da EUDA. | Crédito: Cannareporter
A Agência Europeia de Drogas (EUDA) apresentou nesta quarta-feira (5), em Lisboa, o 30º Relatório Europeu sobre Drogas 2025: Tendências e Desenvolvimentos, que alerta para o avanço das substâncias sintéticas como as catinonas, os nitazenos e os produtos de cannabis sintética ou com adição de canabinoides semissintéticos.
Nesse contexto, Alexis Goosdeel, diretor executivo da EUDA, levantou um questionamento: se os sintéticos continuarem a se espalhar pela Europa, será que um dia o CBD (canabidiol) deverá ser considerado um precursor – e, assim, passar a ser alvo de controles e regulamentações específicas?
Embora a EUDA tenha sido criada apenas em 2024, ela herdou o legado do extinto Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, celebrando, assim, três décadas de coleta e divulgação de dados sobre o consumo e o mercado de substâncias ilícitas e aditivas na Europa.
Segundo o relatório, todas as drogas químicas e sintéticas conhecidas apresentam a mesma tendência: aumento do consumo, da produção em território europeu, da disponibilidade no mercado, do tráfico, do crime e da violência – indicadores confirmados também pelo crescimento nas apreensões.

Os desafios da “nova cannabis”
No caso da cannabis, o relatório destaca novos desafios. Estima-se que 24 milhões de adultos europeus (entre 15 e 64 anos) tenham consumido cannabis no último ano. A potência da resina de cannabis (haxixe) dobrou na última década, chegando a 23% de THC em 2023 – mais do que o dobro do teor médio da cannabis em flor (estável em 11%). No relatório anterior, a estimativa era de 22,8 milhões de consumidores.
A elevação na potência da cannabis, o crescimento na oferta e procura de canabinoides sintéticos e a presença de cannabis natural borrifada com sprays de canabinoides semissintéticos no mercado são tendências claras, que já motivaram a criação de novas medidas regulatórias em alguns países.
Segundo Goosdeel, esses fatores têm gerado preocupações crescentes entre os especialistas, com aumento de consumos de risco e de problemas de saúde relacionados à cannabis.
Resumo dos dados sobre cannabis:
- Cerca de 1,5% dos adultos europeus (aproximadamente 4,3 milhões de pessoas) consomem cannabis diariamente ou quase todos os dias;
- O teor médio de THC no haxixe permanece elevado (23%), enquanto nas flores está em torno de 11%;
- Haxixe e flor continuam sendo os produtos mais consumidos;
- Houve aumento na diversidade de produtos à base de cannabis, incluindo opções com altos níveis de THC associadas a crises de toxicidade aguda atendidas em hospitais;
- Muitos desses produtos são vendidos ilegalmente e podem conter canabinoides sintéticos potentes;
- O HHC, um canabinoide semissintético, foi recentemente incluído na Tabela 2 de substâncias ilícitas e estava disponível em diversos países;
- A maior variedade de produtos eleva os riscos para os consumidores.
CBD como possível precursor de canabinoides sintéticos
Os canabinoides sintéticos, aliados à cannabis cada vez mais potente, são apontados como duas das principais preocupações da EUDA, devido ao crescimento nos atendimentos de emergência causados por esses produtos.
A agência defende a ampliação da pesquisa e uma maior atenção à questão, ressaltando a importância de avaliar os modelos de legalização da cannabis recreativa adotados por diferentes países.
“O rumo das políticas europeias ainda é incerto. O que é claro, porém, é que qualquer mudança deve ser acompanhada de avaliações de impacto”, afirma o relatório. Também é feito um apelo para melhorar a vigilância sobre os padrões de uso.
Goosdeel explicou a diferença entre canabinoides naturais e sintéticos – os últimos são moléculas produzidas em laboratório que imitam a estrutura química das substâncias naturais, mas podem ser mais tóxicas. “Algumas podem matar. E o problema é que as pessoas não sabem o que estão consumindo. Nós também não sabemos. É difícil mensurar o risco”, declarou.
Ele alertou ainda para o aumento de produtos que misturam canabinoides naturais com sintéticos. Nesse sentido, levantou uma questão relevante: como os canabinoides semissintéticos são produzidos a partir do CBD, seria o caso de considerar o CBD como um precursor químico? “Se essas substâncias continuarem a se espalhar pela Europa, talvez um dia o CBD deva ser considerado um precursor”, questionou.
A tarefa de Sísifo
Para ilustrar os desafios enfrentados atualmente, Goosdeel comparou a situação com a lenda de Sísifo, personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma pedra montanha acima eternamente.

Segundo o diretor da EUDA, é preciso equilíbrio e perseverança para lidar com mudanças rápidas no mercado de drogas, aumento da violência ligada ao tráfico e maior envolvimento de jovens vulneráveis em redes criminosas.
A produção de drogas químicas e sintéticas dentro da Europa está crescendo, e as fronteiras europeias são cada vez mais usadas por organizações criminosas para transporte de substâncias e equipamentos para laboratórios.
Essas substâncias são comercializadas por vários meios, incluindo a surface web, e cada vez mais por meio de redes sociais, segundo Goosdeel.
Mil novas substâncias em um ano
Próximo de se aposentar, Goosdeel revelou que, no último ano, a disponibilidade de drogas foi a maior já registrada. “‘Em todo lugar, tudo, para todos’ continua sendo a frase que melhor descreve o cenário atual”, afirmou.
O uso combinado de diferentes drogas (policonsumo) já é prática comum, o que representa um grande desafio para a prevenção, o tratamento e a redução de danos. Goosdeel revelou que, em dezembro passado, foram detectadas mil novas substâncias ativas por meio do sistema europeu de monitoramento – substâncias nunca antes registradas.
A importância dos dados
A questão das drogas é extremamente complexa. Cada país europeu possui sua própria legislação, e as decisões muitas vezes seguem lógicas políticas e econômicas, mesmo diante de dados científicos sólidos.
Como observou o Comissário Europeu para Assuntos Internos e Migração, Magnus Brunner, “boas políticas se fazem com bons dados – é assim que deveria ser, mas na política nem sempre é assim”.

Brunner defendeu o acesso legal por parte das autoridades da União Europeia a informações que permitam mapear redes de tráfico e identificar seus membros. “O acesso aos dados é fundamental para combater o crime organizado. Em muitos casos, os agentes estão de mãos atadas”, afirmou. Mas reconheceu que isso implica rever normas de encriptação e proteção de dados pessoais – um debate sensível.
Ele também afirmou que a UE continuará atuando contra o crime organizado, cortando o financiamento e confiscando os lucros ilícitos do tráfico de drogas – “o negócio ilegal mais lucrativo do mundo”.
Para isso, a UE está trabalhando em uma rede internacional de comunicação entre portos e no desenvolvimento de uma nova estratégia legal para as substâncias precursoras – ingredientes usados para fabricar drogas sintéticas.
Apesar das dificuldades, Brunner disse estar disposto a encarar o desafio. E Goosdeel concluiu: “Vai ser um caminho longo até que possamos encontrar uma solução”.
Cada vez mais sintéticos – mais potentes e mais preocupantes
Alexis Goosdeel apresentou o novo relatório destacando “três grupos específicos” de substâncias que “parecem estar mudando mais rapidamente do que outras ou que, recentemente, passaram a ter maior visibilidade”.
Esses grupos de substâncias são:
Estimulantes
Segundo Goosdeel, “tem havido um aumento significativo na disponibilidade de cocaína e crack. Em 2023, foram apreendidas 419 toneladas de cocaína, e os dados indicam uma redução em 2024”.
Apesar de parecer uma boa notícia, ele alerta que “essa maior disponibilidade está relacionada a uma redução na etapa final do processo técnico de produção da cocaína dentro do território da União Europeia – o que representa um aumento nos danos e nos problemas sociais e de saúde associados. O relatório aponta que, em 25% das overdoses analisadas (1 em cada 4), foi encontrada cocaína misturada com opioides”.
Também foi constatado um aumento na circulação de anfetaminas e ecstasy produzidos na UE. No entanto, as catinonas sintéticas estão entre as substâncias com crescimento mais rápido no mercado: se em 2021 foram registradas 4,5 toneladas, em 2023 esse número saltou para 37 toneladas.
No comunicado divulgado durante a apresentação oficial do relatório, realizada na sede da EUDA, em Lisboa (Portugal), afirma-se que “o Sistema de Alerta Rápido da UE (SAR) sobre novas substâncias psicoativas (NSP) identificou sete novas catinonas sintéticas em 2024, elevando para 178 o número total dessas novas substâncias”, chamando ainda a atenção para a maior disponibilidade dessas drogas, “refletida em importações e apreensões sem precedentes”.
A catinona é a substância ativa presente nas folhas e brotos de khat, um estimulante natural muito utilizado em países árabes (mastigado), com efeitos semelhantes aos das anfetaminas. Essa substância tem sido reproduzida em laboratório com pequenas alterações em sua fórmula, originando as catinonas sintéticas que circulam atualmente — muito mais potentes e tóxicas que a versão natural.
Novos opioides sintéticos
O relatório da EUDA deste ano mostra que, desde 2009, foram identificados 88 novos opioides sintéticos. Em 2024, todos os sete novos opioides registrados eram nitazenos. Atualmente, as autoridades europeias monitoram cerca de 22 tipos diferentes de nitazenos.
Os nitazenos são potentes analgésicos sintéticos que atuam nos mesmos receptores que a heroína. A grande preocupação é que eles são ainda mais potentes do que o opioide sintético mais letal até hoje: o fentanil. Embora o fentanil tenha causado milhares de overdoses nos Estados Unidos nos últimos anos, sua presença no mercado europeu ainda é relativamente limitada. Mesmo assim, os nitazenos conseguem ser ainda mais perigosos que ele.
Nesse grupo, Goosdeel também mencionou o bezimidazol, reconhecendo que “ainda sabemos pouco sobre essas substâncias”, mas expressando esperança de que a rede de laboratórios forenses da Europa traga mais informações sobre ela em breve.
Apesar de não ter incluído a cetamina nesse grupo, é importante destacar que esse anestésico, utilizado legalmente em hospitais, também vem ganhando espaço entre os consumidores europeus: 14% dos usuários relataram uso no último ano (contra 13% em 2023), e a substância foi detectada em “quantidades relativamente baixas nas águas residuais de 82 cidades em 22 países europeus e na Noruega”, segundo o relatório.
Canabinoides
Como já mencionado, os canabinoides sintéticos — combinados com a cannabis cada vez mais potente — são dois dos principais motivos de preocupação para a EUDA, devido ao aumento de casos de emergência hospitalar associados ao consumo dessas substâncias.
Por fim, Goosdeel comentou os dados mais recentes da Pesquisa Europeia nas Escolas sobre Álcool e Outras Drogas (ESPAD), divulgada há cerca de um mês. O estudo aponta uma queda no consumo de substâncias entre estudantes (em especial, a cannabis), mas também revela um aumento preocupante em outros tipos de dependência, como o uso de cigarros eletrônicos, o uso não supervisionado de medicamentos, apostas e jogos online.
Reportagem original de Margarita Cardoso de Meneses, publicada no Cannareporter em 6 de junho de 2025.
Link: cannareporter.eu