Cultivar cannabis no Brasil não é como cultivar em outras partes do mundo

Pesquisa em desenvolvimento busca encontrar soluções para os problemas dos plantios de cannabis em larga escala

Publicada em 13/09/2024

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Plantação de cannabis | Imagem: Vecteezy

Que a cannabis tem potencial para se tornar uma commodity no Brasil é algo que você já deve saber. No entanto, existem alguns obstáculos, além dos mais óbvios, que precisam ser enfrentados para que isso se torne uma realidade. A não regulamentação da cannabis no Brasil lidera essa lista e vem acompanhada de consequências, como a dificuldade em estudar o comportamento de uma plantação de cannabis e fatores externos que implicam no seu desenvolvimento em larga escala.

Na maioria dos países onde a cannabis é legalizada ou regulamentada, e onde é possível ter grandes plantações, o clima não é o mesmo que o do Brasil, que é tropical. Com isso, os recursos disponíveis no mercado atualmente podem não ser suficientes para resolver problemas que podem devastar toda uma plantação, gerando prejuízos ao agricultor.

O Grupo de Trabalho (GT) de Cannabis da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) reconhecendo a necessidade de mais estudos sobre o plantio de cannabis no Brasil, busca desenvolver eixos de pesquisa integrados, apoiando a criação de uma cadeia produtiva robusta e sustentável de cannabis no país. Daniela Bittencourt, que liderou a criação do programa de pesquisa, explica que “o estabelecimento de uma nova cadeia produtiva agrícola envolve significativo investimento em ciência e tecnologia. Nesse sentido, sistemas de produção precisam ser desenvolvidos e ajustados a diversos fatores, como características regionais, pragas e doenças, exigências mercadológicas, competitividade e legislação, e considerando-se ainda o atendimento à sustentabilidade ambiental, social e econômica.”

 

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Daniela Bittencourt no Congresso Brasileiro da Cannabis Medicinal 2024 | Imagem: Sechat

Para a agrônoma Aline Negromonte os desafios a serem superados no aspecto agronômico são, “o clima tropical do Brasil, que pode favorecer a proliferação de pragas e doenças, a obtenção de sementes de qualidade, a escassez de profissionais qualificados (agrônomos e técnicos agrícolas), bem como a falta de tecnologias, táticas e insumos voltados para a cultura da cannabis em solo brasileiro que visem a segurança fitossanitária das áreas de produção. Ainda não foram estabelecidas as regulamentações acerca dos agrotóxicos permitidos na cultura cannabis medicinal, o que evidencia a necessidade de pesquisas agronômicas sobre práticas de manejo.” 

 

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 Aline Nunes Negromonte, doutoranda e pesquisadora na área de Agronegócio. 

Doutoranda da Universidade Federal de Lavras (UFLA), Aline busca desenvolver técnicas e compreender as demandas únicas do solo e clima brasileiros para mitigar os riscos do plantio de cannabis.  Sua pesquisa "Insetos e ácaros associados à cultura da cannabis no Brasil", está sendo desenvolvida sob a supervisão do Prof. Dr. Luís Cláudio Paterno Silveira.

Um questionário sobre informações de cultivos de cannabis existentes no Brasil, tem guiado a pesquisa. Nele, a pessoa pertencente a uma associação de plantio de cannabis, com o devido conhecimento sobre as características do cultivo, deve responder algumas perguntas, como, por exemplo, se o plantio é feito diretamente no solo, em vasos etc.

As respostas devem ser enviadas através deste link e é garantida a confidencialidade das informações, sendo a pesquisa guiada pela ética e propósito de desenvolvimento de soluções para o setor. A colaboração da comunidade é de extrema importância para que seja possível a criação dessa literatura que irá auxiliar e guiar a todos.  

A Embrapa em seu GT de cannabis também inclui pesquisas relacionadas ao controle fitossanitário conforme elucida Daniela, “não poderia ficar de fora, principalmente para as áreas de cultivo orgânico ou de base agroecológica. Matérias-primas vegetais destinadas à produção de fitomedicamento, que não forem provenientes de cultivo orgânico (certificado), deve apresentar laudos de isenção de resíduos de 250 agrotóxicos e 30 micotoxinas (Anvisa, RDC nº 105, de 2016, nº 235, de 2018 e nº 658, de 2022). Isso faz com que aumente ainda mais a demanda por pesquisas para controle fitossanitário com o uso de defensivos naturais e agentes de biocontrole, além do fato de não haver nenhum produto registrado no Brasil para controle de pragas de cannabis.”  

O clima tropical é desfavorável para o cultivo de cannabis então?  
 

Com certeza não! O clima tropical também pode ser um aliado no desenvolvimento da cultura de cannabis. Conforme explica Negromonte “O clima tropical oferece longos períodos de luz solar, o que pode ser benéfico para o crescimento da cannabis, especialmente para cultivares que requerem muita luz. Em algumas regiões, é possível cultivar cannabis ao ar livre durante todo o ano, o que pode reduzir custos com energia e infraestrutura. No entanto, é essencial escolher regiões com menos incidência de chuvas intensas e alta umidade para evitar problemas com fungos e outras doenças. E embora o clima tropical favoreça a proliferação de pragas, o uso de práticas agrícolas sustentáveis e a implementação de manejo integrado de pragas podem ajudar a transformar esse desafio em uma vantagem, promovendo um ambiente de cultivo saudável e produtivo.”

Desafios extras do cultivo de cannabis para fins medicinais  
 

Se tratando de medicamento, tudo é mais rigoroso ainda e por um motivo muito claro: sua eficácia. Os medicamentos são ingeridos por pessoas doentes que depositam sua esperança naquele produto, além de estarem mais suscetíveis aos efeitos negativos de compostos tóxicos para o corpo humano, que devem ser evitados, especialmente nesse momento de “fragilidade”.  

São diversos os pontos em que a atenção deve ser redobrada para o cultivo de cannabis para fins medicinais. Segundo a agrônoma Aline esses pontos são:

"Conformidade regulamentar: É crucial que os produtores cumpram rigorosamente as regulamentações governamentais, que incluem normas de cultivo, colheita, processamento e rastreabilidade. Qualquer desvio pode comprometer a licença de operação.

"Controle de pragas e doenças: O uso de pesticidas e fungicidas deve ser limitado e cuidadosamente controlado para evitar a contaminação dos produtos finais. O manejo biológico e o uso de produtos orgânicos são preferíveis.  

Condições de cultivo: A cannabis medicinal requer condições de cultivo controladas para garantir a pureza e a eficácia do produto final. Isso inclui controle de luz, temperatura, umidade e ventilação.

Pós-colheita e processamento: O manejo pós-colheita é crucial para manter a qualidade dos produtos medicinais. Secagem, cura e armazenamento adequados são etapas críticas para evitar a degradação dos compostos ativos.”
 

O diretor executivo da Associação Abrace Esperança, Cassiano Gomes, fala sobre um desses desafios na prática do cultivo em larga escala, em que a associação teve que adequar sua estrutura para atender tal demanda. “Como nosso hemisfério é trópico, o período de disponibilidade de luz solar se iguala ao período noturno. As plantas precisam de, no mínimo, 16 horas de luz, então tivemos que implantar toda uma estrutura de LEDs, de suportes, para manter as lâmpadas para fazer a suplementação.”  

“Outro desafio é a mão de obra com experiência em cultivo de cannabis em larguíssimas escalas. Eu falo de 10 mil plantas. Não contratamos growers mais, infelizmente!” complementa Cassiano.  

 

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Cassiano Gomes durante apresentação no Talks da Medical Cannabis Fair 2024 | Imagem: Sechat

Rastreabilidade como aliada no controle de pragas e vice-versa
 

Para André Vasconcelos, gerente de projetos da Complysoft, empresa que auxilia associações a realizarem a rastreabilidade entre tantos outros serviços, “o controle de pragas é essencial para a rastreabilidade da cannabis cultivada no solo, pois garante a qualidade e a segurança da cannabis ao longo da cadeia de produção. A rastreabilidade é a capacidade de acompanhar e documentar cada etapa do processo de produção, desde o cultivo até a chegada ao consumidor final." 

Ainda segundo Vasconcelos, quando se tem um controle efetivo de pragas, é possível garantir a qualidade do produto. "O controle de pragas evita que culturas sejam danificadas ou contaminadas, o que poderia comprometer a qualidade do produto final. Produtos de qualidade inferior podem ser identificados e removidos da cadeia de suprimentos através da rastreabilidade."


Prevenir a contaminação



O gerente explica que pragas podem introduzir doenças ou contaminantes em produtos agrícolas, o que pode ter consequências graves para a saúde pública. "O controle de pragas eficaz ajuda a minimizar esses riscos, e a rastreabilidade permite identificar a origem de qualquer contaminação rapidamente."
 

Cumprir com regulamentações


Ao finalizar, Vasconcelos disse que "muitos mercados exigem que os produtos agrícolas sejam livres de pragas e doenças, e a rastreabilidade ajuda a demonstrar conformidade com esses requisitos regulatórios.”