Inuítes, Beduínos e o Sistema Endocanabinoide: A Engenharia Biológica da Sobrevivência Humana

O SEC não é um mero coadjuvante. É herança de 600 milhões de anos, presente até em ouriços-do-mar. Nos humanos, orquestra desde a implantação do embrião até a resposta ao estresse.

Publicada em 20/05/2025

Inuítes, Beduínos e o Sistema Endocanabinoide: A Engenharia Biológica da Sobrevivência Humana

Imagem Ilustrativa: Canva Pro

Por Lauro Pontes

 

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Lauro Pontes é psicólogo clínico, pós-doutorando em neurociência.

A humanidade sempre desafiou os limites da natureza. Enquanto escrevo esta coluna, lembro-me das palavras do neurocientista António Damásio: "Somos máquinas vivas programadas para sobreviver". E que máquinas! Das geleiras do Ártico aos desertos escaldantes do Saara, populações como os Inuítes e os Beduínos não apenas sobrevivem, mas prosperam. O segredo? Uma combinação de engenhosidade cultural e uma rede biológica pouco celebrada: o sistema endocanabinoide (SEC).

 

O Ártico e os Genes que Esquentam Corpos (e a Ciência)


Os Inuítes, habitantes ancestrais do Ártico, são um laboratório vivo de adaptação. Por séculos, cientistas debateram como suportavam dietas hiperlipídicas sem desenvolver doenças cardiovasculares. A resposta veio dos genes FADS, responsáveis pelo metabolismo de ácidos graxos. Estudos revelam que variantes genéticas nesses genes, presentes em 80% dos Inuítes, otimizam a conversão de ômega-3 em moléculas anti-inflamatórias. Mas há mais: o tecido adiposo marrom (BAT), uma "caldeira biológica", é ativado pelo gene TBX15, que regula a termogênese sem tremores.


Aqui, o SEC entra em cena. Pesquisas recentes mostram que a exposição ao frio reduz os níveis de anandamida (AEA), um endocanabinoide, no hipotálamo. Essa queda desencadeia a produção de calor no BAT via receptores CB1. Em outras palavras: o SEC age como um termostato evolutivo, ajustando nosso metabolismo às intempéries.

 

Beduínos: Os Alquimistas do Deserto
 

Enquanto os Inuítes dominam o frio, os Beduínos desafiam o calor. Suas cabras, aliadas na sobrevivência, revelam segredos fisiológicos. Em escassez alimentar, reduzem o metabolismo em 60% – não pelo intestino, mas pelo músculo esquelético. Nos humanos, o SEC modula essa economia energética. O 2-AG, outro endocanabinoide, suprime o apetite em condições extremas, priorizando a queima de reservas.
A hidratação é outra proeza. As cabras beduínas reidratam-se com 30% menos água que bovinos, graças a rins adaptados. Nos Beduínos, o SEC regula a excreção de sódio e a retenção hídrica via receptores CB2 nos túbulos renais. É a biologia confirmando a sabedoria ancestral: suas tendas negras, que canalizam brisas frescas, são extensões desse equilíbrio homeostático.

 

O Sistema Endocanabinoide: Um Legado Evolutivo

 

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Imagem gerada por IA


O SEC não é um mero coadjuvante. É herança de 600 milhões de anos, presente até em ouriços-do-mar. Nos humanos, orquestra desde a implantação do embrião até a resposta ao estresse. Ele é a ponte entre ambiente e genoma.


As variantes genéticas dos Inuítes nos FADS não apenas processam gordura – elas produzem precursores para endocanabinoides. O EPA e o DHA são precursores da eicosapentaenoil etanolamida (EPEA), um endocanabinoide anti-inflamatório. Ou seja: a seleção natural moldou não apenas o metabolismo, mas a sinalização canabinoide.


Em ambientes extremos, o estresse é crônico. O SEC modula o eixo HPA (hipotálamo-pituitária-adrenal): a AEA inibe a liberação de cortisol, enquanto o 2-AG a estimula. Essa dualidade permite ajustes precisos – vital para um Beduíno em uma tempestade de areia ou um Inuíte em uma caçada noturna.


Estudar essas populações não é mera curiosidade acadêmica. A história humana é escrita por genes, cultura e moléculas. O SEC, como demonstram Inuítes e Beduínos, é o fio condutor. Em um planeta em crise climática, entender essas adaptações não é opcional – é sobrevivência.


A cannabis, tão ancestral quanto nossa espécie, tem muito a ensinar. Resta-nos escutar.