Traduzindo a medicina para a justiça: o papel do laudo agronômico no Habeas Corpus
Especialistas explicam por que o relatório se tornou indispensável para comprovar a finalidade terapêutica e garantir a continuidade do tratamento
Publicada em 14/10/2025

Laudo Agronômico funciona como uma ponte entre a prescrição médica, o cultivo e a linguagem jurídica, traduzindo as implicações de um cultivo caseiro. Imagem ilustrativa: Canva Pro
Para pacientes que dependem do autocultivo para obter seu medicamento, a busca por um Habeas Corpus preventivo é um caminho complexo, necessário e crescente. Em 2024, somente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) foram registrados 82 pedidos de habeas corpus relacionados ao cultivo — um aumento de 4.100% em relação a 2018.
Nesse cenário, um documento ganhou protagonismo para o sucesso do processo: o laudo agronômico. Este relatório funciona como uma ponte entre a prescrição médica, o cultivo e a linguagem jurídica, traduzindo as implicações de um cultivo caseiro.

É o que explica Vinícius Carrasco, engenheiro agrônomo que atua com laudos para fins medicinais desde 2023. "O laudo agronômico tem como objetivo principal materializar e tornar visível para o juiz e para o paciente questões como qual vai ser o tamanho do jardim necessário para que o tratamento de saúde aconteça de uma forma segura, padronizada e contínua", afirma.
Carrasco aponta o laudo como essencial para que pacientes não fiquem sem subsidio para produzir seus medicamentos à base da planta. "Um tratamento de saúde não pode ser interrompido por falta de plantas ou por falta de matéria para processamento", complementa.
Como o laudo agronômico dimensiona o cultivo
O ponto de partida para a elaboração do laudo agronômico é sempre a receita médica, que especifica a quantidade diária de canabinoides necessária para o paciente. A partir dessa dosagem, o agrônomo inicia um cálculo complexo para dimensionar o jardim.
"São considerados aspectos de produção, rendimento por planta, técnica utilizada para extração e uso dessa extração. Além de uma margem de segurança para eventuais fatores como ataque de insetos, doenças ou perdas no cultivo", detalha Carrasco.
Diversas variáveis são analisadas, como o produto prescrito - óleo, flores - e a via de administração. Carrasco explica que adota um método padrão e seguro nos seus cálculos de extração. "Eu sempre considero nos laudos como base a forma de extração com etanol a frio. 10% [de rendimento] acaba sendo uma taxa segura", pontua.
Foco na eficiência e no controle
Essa abordagem conservadora também se aplica ao número de plantas. Segundo o especialista, um jardim menor e bem manejado é mais eficiente e melhor visto pelo Judiciário. "Às vezes um jardim pequeno bem cuidado vai ser muito melhor do que um grande jardim que peque por deficiência. Eu sempre foco nessa questão de um número mais conservador de plantas", pontua.

A preocupação é ainda maior quando o cultivo da paciente é feito em um ambiente fechado ou "indoor". Questões como ajuste de temperatura, umidade, ventilação e luminosidade, geram custos e trabalhos adicionais, sendo melhor manejados em ambientes menores. "80, 50 plantas em um quintal já é bastante coisa, agora imagina dentro de casa. Quantos metros quadrados o paciente tem? Qual a condição financeira dele? Tudo é levado em consideração".
A prescrição, o laudo e o cultivo
O laudo agronômico raramente é o primeiro passo na jornada do paciente. Segundo Vinícius Carrasco, o documento costuma ser elaborado após quatro a seis meses após o início do tratamento com cannabis medicinal, período em que o médico avalia a resposta terapêutica.
Nesse intervalo, a figura do advogado se torna central, sendo ele quem geralmente conecta o paciente ao especialista. "Geralmente, os advogados indicam os profissionais que podem atender essa demanda. Então, os pacientes chegam até o engenheiro agrônomo por meio de indicações", explica.
Uma vez estabelecido o contato, o passo a passo começa com a análise da receita médica para entender a demanda. A partir daí, o agrônomo inicia uma conversa para alinhar a prescrição com a realidade do paciente. "Nesse primeiro momento, são feitas perguntas iniciais a respeito de técnica, de espaço disponível, de possibilidade de investimento ou não", detalha Carrasco.
Ele destaca que, com frequência, oferece um acompanhamento técnico, principalmente para iniciantes. "O objetivo é produzir com alta qualidade uma planta que vá se tornar um medicamento que vai te acompanhar por bastante tempo. Então, esses cuidados iniciais, eu acredito que importantes".
Relevância da informação para o jurídico

Carrasco destaca ainda que o laudo agronômico deve focar nas informações relevantes para a decisão judicial, evitando detalhes técnicos excessivos. "O juiz, o julgador, não tem necessidade de saber qual é essa metodologia do cultivo. Precisa saber do número de plantas", esclarece.
"No laudo eu evito entrar em detalhes muito técnicos, como por exemplo iluminação, fertilização, tamanho de vaso, tipo de substrato, porque essa é uma temática que no momento não é interessante para o momento. É algo que será definido entre o médico, o paciente e o engenheiro agrônomo".
Outra preocupação abordada é o destino dos resíduos vegetais - folhas, galhos, caules -, preocupações apontadas pelos juízes. Carrasco recomenda e descreve uma solução sustentável, como a compostagem. "Você colocando esse material vegetal dentro do sistema de compostagem, ele vai se transformar num insumo que pode voltar para o ciclo produtivo sem problema nenhum", explica.
A importância jurídica de um laudo agronômico
Do ponto de vista legal, o laudo agronômico confere a seriedade e a fundamentação que o pedido de Habeas Corpus exige. Carla Coutinho, advogada e colunista do Portal Sechat, reforça a importância do documento. "Um laudo agronômico bem elaborado confere robustez técnica e credibilidade jurídica ao pedido. Ele demonstra ao Judiciário que o cultivo pretendido possui parâmetros técnicos definidos, afastando a ideia de improviso ou risco social".
No entanto, Coutinho alerta que o laudo é parte de um conjunto de provas. "É imprescindível a união de documentos que demonstrem a necessidade médica. Isso inclui o laudo e a prescrição médica, que comprovam o diagnóstico e a indicação da cannabis", finaliza.